A primeira multa de trânsito e a esquadra de Santa Marta (Crónica)

Em 1970, regressado da guerra colonial, retomei a docência na escola n.º 44, ao cimo da rua da Beneficência, para onde concorrera, por estar próxima da faculdade de Direito de Lisboa que, antes da guerra, tinha intenção de frequentar.

O vencimento escasso, razão que me levou a abandonar a função pública, obrigou-me a dar aulas de manhã, a trabalhar como agente comercial, à tarde, e a esquecer o curso.

Com o dinheiro poupado por quem esteve sempre em zona de guerra, onde a cantina do aquartelamento era o único sítio para o gastar, fora dos dois períodos de férias gozados entre Nampula e a paradisíaca Ilha de Moçambique, comprei o primeiro automóvel que, aliás, era indispensável nas funções comerciais.

Não demorou a surgir primeira multa. Numa noite de sábado, às três horas da manhã, à saída de uma casa de fados do Bairro de Alfama, tinha no para-brisas do carro o aviso, por estacionamento em sítio proibido.

Uns dias depois, persuadido por amigos de que a primeira multa era perdoada, dirigi-me com o papelinho à R. de Santa Marta, onde um corpulento subchefe da PSP me atendeu. Pegou no papel, deixou-o sobre o balcão, e subiu com esforço um escadote para tirar da última prateleira da estante um dos dossiês onde estavam arquivados centenas de autos das transgressões rodoviárias. Enquanto reparava na sala, cheia de gente, via o subchefe a descer com uma das mãos agarrada ao escadote e a outra ao dossiê a defender o corpo e os documentos de uma eventual queda.

Arfou primeiro, e leu depois que o automóvel RT-50-46 estava parado no dia X, na rua Y, às 2H30 da manhã de domingo, entre uma placa de estacionamento proibido e outra de fim de estacionamento proibido e, ato contínuo, deslocou o enorme corpanzil para o escadote, a fim de repor o pesado dossiê no sítio respetivo, descendo incólume com as suas quase sete arrobas, de costas para o público.

Virado para o balcão, já ressarcido do esforço, perguntou-me se queria pagar a multa.

Disse-lhe em surdina que era a primeira vez, senhor chefe, fica sempre bem tratar um subchefe por chefe, não é meu hábito transgredir, era verdade, multado no primeiro fim de semana com carro, que ganhava mal, como ele, podia perdoar a multa. Sobranceiro, em voz alta, disse que ali não de perdoavam multas, e perguntou se queria pagar ou não, autoritário, desafiador, e senti os olhos de dezenas de pessoas sobre mim.

Humilhado, disse alto, para que todos ouvissem, que devia saber que os ordenados dos funcionários públicos não permitiam pagar a pronto, e perguntei se era possível pagar a prestações, como na compra de eletrodomésticos, e exasperou-se a gritar, que não, não era possível, e não era problema dele. Ressoou uma gargalhada na ampla sala apinhada e atraí a simpatia geral.

Para ressarcir-me da humilhação, disse-lhe para me repetir o motivo da multa, não tinha tomado nota, era muito cuidadoso, duvidava da transgressão. Encarei-o sem medo e foi divertido vê-lo de novo no escadote a refazer o trajeto inicial. Mal-humorado, voltou a ler-me as razões da transgressão e a citar-me o artigo do código que implicava a multa de 20 escudos, se a memória me não trai. Fui tomando nota num papel, devagar, e a certa altura, balbuciei, sou sempre tão cuidadoso, para, em voz alta, perguntar, ó senhor guarda, despromovi-o então para compensar a promoção inicial, quem me garante que a placa não foi posta depois de ter estacionado o carro? Outra sonora gargalhada ecoou na sala e o subchefe perdeu a fala. Tartamudeou depois que não podia ser, que eu estava multado, enquanto dei as boas tardes e o deixei amarrado ao dossiê, ao balcão e ao gozo dos outros infratores, e saí.

Com a incapacidade dos Tribunais para julgarem as dezenas de milhares de multas de trânsito aplicadas em Lisboa, visitas papais e numerosas amnistias, penso que a multa de 1970 prescreveu antes de o subchefe engolir a azia e a arrogância.

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