Um texto* que, quase 17 anos depois, voltaria a escrever.
«Secularização
A emancipação do Estado face à religião iniciou-se em 1648,
após a guerra dos 30 anos, com a Paz da Vestfália e ampliou-se com as leis de
separação dos séc. XIX e XX, sendo paradigmática a lei de 1905, em França, que
instituiu a laicidade do Estado.
A libertação social e cultural do controle das instituições
e símbolos religiosos foi um processo lento e traumático que se afirmou no séc.
XIX e conferiu à modernidade ocidental a sua identidade.
A secularização libertou a sociedade do clericalismo e fez
emergir direitos, liberdades e garantias individuais que são apanágio da
democracia. A autonomia do Estado garantiu a liberdade religiosa, a tolerância
e a paz civil.
Não há religiões eternas nem sociedades seculares perpétuas.
As três religiões do livro, ou abraâmicas, facilmente se radicalizam. O
proselitismo nasce na cabeça do clero e medra no coração dos crentes.
Os devotos creem na origem divina dos livros sagrados e na
verdade literal das páginas vertidas da tradição oral com a crueza das épocas
em que foram impressas.
Os fanáticos recusam a separação da Igreja e do Estado,
impõem dogmas à sociedade e perseguem os hereges. Odeiam os crentes das outras
religiões, os menos fervorosos da sua e os sectores laicos da sociedade.
Em 1979, a vitória do ayatollah Khomeni, no Irão, deu início
a um movimento radical de reislamização que contagiou Estados árabes, largas
camadas sociais do Médio Oriente e sectores árabes e não árabes da Europa e dos
EUA.
Por sua vez o judaísmo, numa atitude simétrica, viu os
movimentos ultraortodoxos ganharem dinamismo, influência e armas, empenhando-se
numa luta que tanto visa os palestinianos como os sectores sionistas laicos.
O termo «fundamentalismo» teve origem no protestantismo
evangélico norte-americano do início do séc. XX. Exprimiu o proselitismo,
recusa da distinção entre o sagrado e o profano, a difusão do deus
apocalíptico, cruel, intolerante e avesso à modernidade, saído da exegese
bíblica mais reacionária. Esse radicalismo não parou de expandir-se e já
contaminou o aparelho de Estado dos EUA.
O catolicismo, desacreditado pela cumplicidade com regimes
obsoletos (monarquias absolutas, fascismo, ditaduras várias), debilitou-se na
Europa e facilitou a secularização. O autoritarismo e a ortodoxia regressaram
com João Paulo II (JP2), que arrumou o concílio Vaticano II e recuperou o
Vaticano I e o de Trento.
JP2 transformou a Igreja católica num instrumento de luta
contra a modernidade, o espírito liberal e a tolerância das modernas
democracias. Tem sido particularmente feroz na América latina e autoritária e
agressiva nos Estados onde o poder do Vaticano ainda conta, através de
movimentos sectários de que Bento XVI é herdeiro e protetor, se é que não
esteve na sua génese.
A recente chegada ao poder de líderes políticos que
explicitam publicamente a sua fé, em países com fortes tradições democráticas
(EUA e Reino Unido), foi um estímulo para os clérigos e um perigo para a
laicidade do Estado. Por outro lado, constituem um exemplo perverso para as
populações saídas de velhas ditaduras (Portugal, Espanha, Polónia, Grécia,
Croácia), facilmente disponíveis para outras sujeições.
A interferência da religião no Estado deve ser vista, tal
como a intromissão militar, a influência tribal ou as oligarquias - uma forma
de despotismo que urge erradicar.
A competição religiosa voltou à Europa. As sotainas
regressam. Os pregadores do ódio sobem aos púlpitos. A guerra religiosa é uma
questão de tempo a que os Estados laicos têm de negar a oportunidade.
A ameaça de Deus paira de novo sobre a Europa. As saprófitas
da Providência vestem sotainas e ensaiam o regresso ao poder. Os pregadores do
ódio voltaram aos púlpitos.»
* Artigo de opinião publicado no Expresso em 27 de agosto de
2005
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