Alunos do Liceu da Guarda em excursão cultural da Mocidade Portuguesa (MP) – Crónica
Quando, neste mês de setembro de 2022, vi o programa da ida a Mangualde, em 28 de maio de 1958 (?), o ano está omisso, que o Alexandre Lourenço Marques conservou, com os nomes dos artistas de Teatro, Variedades e Serenata Monumental, todos então condiscípulos e amigos, provocou-me uma explosão de recordações e sentimentos.
Estávamos a terminar o ano XXXII da Revolução Nacional,
eufemismo que a ditadura dava ao golpe militar que nos condenou a 48 anos de
fascismo. O liceu só tinha verba para uma semana de aquecimento onde as
temperaturas negativas duravam meses, mas havia uns dinheiritos para os meninos
da Mocidade viajarem em patriótica propaganda do regime.
Assomam tantas e tão variadas memórias que é difícil dar
coerência à narração e deixar escorreita a prosa sobre recordações tantas
décadas escondidas. Se o dia 28 de maio foi infausto, em Mangualde, para
dezenas de adolescentes, como o fora em 1926 para todo o País, de forma bem mais
grave, já o dia anterior não tinha sido auspicioso.
No dia 27 saímos da Guarda, ansiosos por jantar e dormir no
Hotel de Gouveia, rapazes que nunca entraram num hotel, até pronunciávamos ‘hotel’
como palavra grave, sob o comando do Luciano Duarte Calheiros, referido no folheto
com o sumptuoso cargo de Comandante de Divisão C. B., isto é, Comandante de
Bandeira da MP.
Chegámos a Gouveia, de capa e batina, o liceu da Guarda era
a Universidade de Coimbra dos pequeninos cujas praxes e traje imitava, não com
a farda da MP, que seria tão deslocada na Serenata como viola em enterro. Até o
Dr. Ramalho, o comissário da MP, nos tinha autorizado o traje académico que a
maioria de nós levava emprestado.
Íamos sob os auspícios da Mocidade Portuguesa, sem passarmos
pela vergonha de que não tínhamos consciência. Éramos vanguardistas, talvez o
Calheiros já cadete, segundo a terminologia etária da MP. Os lusitos terminavam
aos dez anos, e a idade de infantes sumira-se nos primeiros anos de liceu.
O Calheiros, acompanhado de comandantes de Castelo, foi
apresentar cumprimentos ao presidente da Câmara, Dr. Alfredo dos Santos Júnior,
um futuro ministro do Interior de Salazar. Entraram com a devida vénia e o
tradicional cumprimento com as capas, mas o acolhimento deixou-os gelados: “Não
vos conheço assim mascarados. Vou desmarcar o Hotel”. O Calheiros ainda tentou
arranjar uma desculpa, mas o Miranda Garcia explicou que, não estando fardados
da Mocidade, não tínhamos direito às mordomias prometidas. Ficámos conformados.
A revolta era luxo que não existia ainda.
Anos mais tarde perceberia que a ausência da saudação nazi e
a falta do brilho do ‘S’, a inicial do ditador, que cobria o cinto da farda,
tinham amofinado o edil salazarista.
Depois de telefonemas do Calheiros para a Guarda, em
contacto com o Dr. Ramalho, lá se arranjou um sítio para jantar e uma pensão
onde dormir depois do espetáculo. Este decorreu com normalidade e os artistas,
despojados dos adereços, dirigiram-se para a pensão destinada. Ficámos três em
cada cama, os mais magros, ou ‘só’ dois. Ainda que algum soubesse o que era um
pijama, nenhum levou qualquer muda de roupa interior ou teve necessidade de
tomar banho. Eram tempos heroicos!
Recordo-me de dormir com dois colegas em cama de corpo e
meio, encostada à parede, tendo-me calhado a parte de fora, o que me enviava
para o chão sempre que mudávamos de posição. O do meio era o Fatela, colega de
turma, sobrinho do pároco da Meimoa, de onde trazia umas esmolas da caixa das
almas, de que beneficiei no início de cada novo período escolar, e que cumpriam
a piedosa devoção ao bilhar, no Café Cristal. Mas isso e o encontro com o
Fatela na guerra de Moçambique onde há de ter passado um Inferno, alferes na
Companhia de Intervenção n.º 1626, são memórias de outra crónica.
Em Gouveia, acordámos sem direito a pequeno almoço e
deambulámos em grupos pela vila até à hora da partida. Alguém nos disse que o
padre Isidro era homem para nos dar o pequeno almoço e fui eu que não hesitei
em bater-lhe à porta e perguntar-lhe se era capaz de oferecer um copo de vinho
à rapaziada. Não sei de onde veio tanto pão, queijo e presunto para saciar meia
dúzia de adolescentes, que o vinho não faltava na adega de um grande
colheiteiro de excelente vinho do Dão.
Único motivo de ansiedade: os irmãos Caramelo, Teodoro e
Fernando, e o Sobral Dias não compareceram à saída do autocarro e foi vã a
espera para Mangualde. Apareceram, à boleia, a tempo de participarem no Grande
Sarau de Arte, designação do evento.
Amesendados no Refeitório do Colégio, tudo correu bem até ao
início do espetáculo, no Teatro Império de Mangualde, mas fomos vaiados pelos
alunos residentes. Não percebi a razão da animosidade e era duvidoso que fosse
hostilidade à data que talvez não fosse inocente para quem organizou o périplo.
Os distritos da Guarda e de Viseu eram, aliás, reservas do regime e regiões de
recrutamento de figurantes para as excursões de apoio a Salazar, em Lisboa, sempre
que era precisa uma ação de propaganda do regime.
Não me recordo de situações anómalas durante o espetáculo e
penso que o numeroso público ficou rendido aos jovens e promissores artistas.
O pior estava reservado para o regresso à Guarda. Ao
entrarmos no autocarro acolheu-nos um fedor insuportável. No corredor alguém
defecou abundantemente e a pestilência do odor também vinha dos bancos e vidros
onde as fezes foram a tinta dos desenhos que não primaram pela originalidade ou
bom gosto.
Esquecido o cheiro e as contrariedades dessa deslocação,
mais acidentada do que outras, cabe ao cronista, com os defeitos do homem que é
e das circunstâncias que o moldaram, deixar, em letra de forma, estas memórias
que o programa, guardado pelo Alexandre, despertou no voluntário escriba.
Deixo um abraço amigo aos que ainda vivem, e recordo com imensa saudade todos os falecidos, alguns bem cedo, como o Teodoro e o Corvas.
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