Bento XVI (B 16) – 5458 carateres – Não aconselhável a beatos e reacionários

O antigo Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, ex-Santo Ofício, foi branqueado nos cinco dias de exposição do cadáver à veneração dos fiéis. Reescreveu-se o seu passado, e atraem-se ódios contra quem recorda a vida do defunto.

Joseph Ratzinger, com o pseudónimo de Bento XVI, foi Papa da Igreja Católica desde 19 de abril de 2005 a 28 de fevereiro de 2013. Preparou a sua eleição metodicamente na Prefeitura onde mereceu o epíteto de “Rottweiler de Deus” e, sobretudo, quando dirigiu as exéquias fúnebres do seu antecessor, a estrela pop que ele desprezava pela grande indigência teológica e abissal diferença de inteligência e cultura que os separava.

No início de 2022, alvo de acusações, por ter ocultado quatro casos de pedofilia quando arcebispo de Munique, entre 1977 e 1981, pediu "perdão" e manifestou a sua "profunda" vergonha. Não resistiu à denúncia, às intrigas e, sobretudo, às ameaças a que foi sujeito.

 Renunciou ao camauro, aos sapatinhos vermelhos, ao anelão e ao alvará para a criação de santos e cardeais, e manteve-se vivo e referência dos católicos mais reacionários, até ao último sábado. A propósito do encobrimento de pedófilos diremos, parafraseando o PR português, “esqueçamos isso agora, e concentrarmo-nos no que é importante, homenagear condignamente o Papa que, não só os católicos, mas todos os portugueses estimam” e, em nome dos quais se desloca ao funeral. Resta dizer que a ocultação de casos de pedofilia foi confirmada, há um ano, por uma comissão criada pela própria diocese de Munique para a respetiva investigação.

Os elogios de que foi alvo, após a morte, para além da referência à sua enorme cultura e inteligência, factos indiscutíveis, mais pareciam uma forma de diminuir o atual Papa do que de enaltecer o único pontífice que teve direito a um funeral presidido pelo sucessor.

No entanto, Francisco não será intelectualmente inferior, e é seguramente muito mais humano e tolerante.

B16 foi muito amigo de Hans Küng, o teólogo suíço e conselheiro de João XXIII, com quem se bateu pelo Concílio Vaticano II. Separou-se dele depois, e acabou por afastá-lo do ensino católico durante o consulado de Karol Wojtyla, que pontificou sob o nome de João Paulo II (JP2).

Leonardo Boff disse de B16: “vê na modernidade arrogância, relativismo, materialismo e ateísmo”. Quando ouvi Marcelo e Cavaco a falarem de B16, em substituição de Aura Miguel e João César das Neves, interroguei-me se não saberiam quem perseguiu Hans Küng, Leonardo Boff e outros católicos progressistas relevantes, sobretudo Marcelo, já que de Cavaco não se espera qualquer laivo de cultura ou entendimento.

Ratzinger escreveu um comentário teológico sobre o suposto 3.º segredo de Fátima, a pedido do Papa João Paulo II, onde esclareceu que a profecia dos pastorinhos sobre o “bispo vestido de Branco” que morria baleado não se concretizou por causa do poder da oração, apesar de JP2 julgar que era ele o alvo da profecia.

O papa Bento XVI consagrou-se um crítico musical com o seu livro “Lodate Dio con arte“, que compila os seus discursos e outros escritos sobre arte e, especialmente, sobre música, mas, na opinião do autor deste preâmbulo, a música de Ratzinger era diferente.

 O papa Bento XVI consagrou-se um crítico musical com o seu livro “Lodate Dio con arte“, que compila os seus discursos e outros escritos sobre arte e, especialmente, sobre música, mas, na opinião do autor deste preâmbulo, a música de Ratzinger era diferente:

A Música de Ratzinger

«O Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Sagrada Congregação para a Fé (ex-Santo Ofício) num ensaio consagrado à liturgia, em 11 de fevereiro de 2001, criticou severamente a música rock e pop e manifestou reservas em relação à ópera que acusa de ter “corroído o sagrado” de tal modo que – cita – o papa Pio X “tentou afastar a música de ópera da liturgia”, donde se deduz que ela é claramente desajustada à salvação da alma.

Eu já tinha desconfiado que certa música é a “expressão de paixões elementares” e que “o ritmo perturba os espíritos”, estimula os sentidos e conduz à luxúria. Salvou-me de pecar a dureza de ouvido que tinha por defeito e, afinal, era bênção.

Mas nunca uma tão relevante autoridade eclesiástica tinha sido tão clara quanto aos malefícios da música, descontada a que se destina à glorificação do Senhor, à encomendação das almas ou a cerimónias litúrgicas, outrora com o piedoso sacrifício dos sopranistas.

Espero que o gregoriano, sobretudo se destinado à missa cantada, bem como o Requiem, apesar do valor melódico, possam ressarcir-nos a alma dos danos causados pelo frenesim da valsa, a volúpia do tango ou a euforia de certos concertos profanos.

Só agora, mercê das avisadas palavras de Sua Eminência, me interrogo sobre a acção deletéria do Rigoleto ou da Traviata, dos pensamentos pecaminosos que Aida ou Otelo poderão ter desencadeado em donzelas – para só falar de Verdi – ou dos instintos acordados pela Flauta Encantada, de Mozart, ou pelo Fidélio, de Beethoven! E não me venham com a desculpa de que há diferenças entre a ópera dramática e a cómica, ou entre esta e a ópera bufa.

A música, geralmente personificada na figura de uma mulher coroada de loiros, com uma lira ou outro qualquer instrumento musical na mão, já nos devia alertar para o pecado oculto na harmonia dos sons.

Sua Eminência fez bem na denúncia. Espera-se agora que, à semelhança das listas que publicou com os pecados veniais e mortais e respetivas informações complementares para os distinguir, meta ombros à tarefa ciclópica de catalogar as várias músicas e os numerosos instrumentos em função do seu potencial pecaminoso.

Penso que a música sacra é sempre de louvar (desde que dispensados os eunucos), enquanto a música de câmara, a ser executada em reuniões íntimas, é de pôr no índex. Na música instrumental, embora o adjetivo seja suspeito, talvez não haja grande mal, e quanto à música cifrada não tenho dúvidas de que transporta uma potencial subversão.

Nos instrumentos há-os virtuosos, como o sino, o xilofone, as castanholas e quase todos os de percussão, deixando-me algumas dúvidas, mais por causa do nome, o berimbau.

Nos de corda, exceção para o contrabaixo e, eventualmente, o piano (excluídas perigosas execuções a quatro mãos) quase todos têm riscos a evitar. A lira, o banjo, a cítara, o bandolim e o violino produzem sons que conduzem à exacerbação dos sentidos.

Mas perigosos mesmo – a meu ver –, são os instrumentos de sopro. Abro uma exceção para os órgãos de tubos que nas catedrais se destinam a glorificar o Altíssimo. Os outros me parecem pecaminosos. A flauta, o clarim, o fagote, o pífaro e a ocarina estimulam diretamente os lábios e, desde o contacto eventualmente afrodisíaco aos sons facilmente lascivos, tudo se conjuga para amolecer a vigilância e nos escravizar os sentidos. Nem o acordeão, a corneta de pistões ou a gaita-de-foles merecem confiança.

Apreciemos o toque das trindades dos sinos dos campanários e glorifiquemos o Senhor no doce chilrear dos passarinhos. Cuidado com a música e, sobretudo, com os efeitos luminosos associados. Estejamos atentos às palavras sábias do Cardeal Ratzinger.»

Publicado in Pedras Soltas, Ed. 2006.

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