A Miuzela e o Pinho Redondo
Enquanto o país arde com regularidade e bombeiros se esmeram a preservar os restos da floresta, espécie de lastro que no próximo ano há-de servir para os incêndios que hão-de voltar, recordo a aldeia da minha infância.
Fogos havia-os, às vezes, nas habitações de cuja loja era mister salvar logo os animais, pela falta que faziam e dificuldade de os revezar e, de imediato, as crianças que o dever cristão impunha, ainda que as febres as levassem pois eram poucas as que arribavam nos tempos em que era precária a higiene, inquinada a água e minguada a assistência médica.
Nos campos não havia fogos. Duas léguas em redor nem uma gesta vingava, não crescia um chaparro, nenhuma planta sobrava para a queima inútil dos fogos que hoje devoram o mato, recolhidas por padeiros que não deixavam arrefecer os fornos que coziam trigo para abastecer os mercados e feiras num raio de meia dúzia de léguas ou mais.
Há anos disseram-me que a Miuzela esteve em perigo, que o fogo chegou às casas e entrou pelos caminhos da povoação, como se as casas tivessem mudado de sítio ou a aldeia tivesse acompanhado a sua gente nos caminhos da emigração.
Desse tempo restava o pinho redondo a cuja sombra me acolhia a jogar a bisca de nove ou a sueca, se havia parceiros, em tardes longas de canícula e convívio. A imensa copa era excepção numa terra sem árvores, expulsas pelo cultivo da vinha e o amanho das hortas. Só os freixos delimitavam os lameiros e alguma figueira teimava em sobreviver por entre as fisgas de terra que separava os barrocos.
Este Verão fui à Miuzela, como de costume. O pinho redondo tinha desaparecido do horizonte, quando fiz a curva junto à vinha do Panelo e não o vi ao passar o Espadanal.
Só muito perto vi o tronco de que logo afastei o olhar. Alguém feriu as raízes e, como um veneno que se entranha, secou a árvore que fazia parte da aldeia e da memória.
Primeiro foram as pessoas que amei, agora até a vista do velho pinheiro me roubaram. O pinho redondo era o último elo de uma cadeia de afectos que se vai rompendo, uma silhueta amiga no horizonte sacrificada por um monte de ferro e cimento a caminho de ser casa.
Não vi os ramos frondosos a secar, não assisti aos gemidos do pinho manso no seu estertor. Não senti o gigante tombar, sofri apenas o vazio da memória. Dolorosamente.
Comentários
Não podia lê-lo e passar indiferente.
Estou a caminho dos setenta anos e quando regresso ao Portugal profundo sinto aquilo que o amigo Esperança sentiu.
Portugal está mais velho e estragado do que nós...os velhos.
Um abraço
Ninguém está velho antes de se deixar morrer por dentro.
E o Acácio Simões parece bem vivo e atento.
Quanto à idade gostaria que o IVA fosse da diferença que nos separa (menos de 10%). Somos ambos sexagenários.
e nem sabe que isto existe.
Metade da outra metade não compreende como se gosta dum pinheiro. Pinheiros há muitos!
O resto que sobra, onde eu me conto, olha em volta e pergunta:
Que espécie de loucura colectiva tomou os portugueses?
Subiu-lhes à cabeça a liberdade, que eles confundiram com a libertinagem?
O Unamuno tinha razão, quando nos chamou raça de suicidas?
Aquele pinheiro serviu a gerações de garotos para se refugiarem do sol nas suas brincadeiras.
Apesar de ser uma propriedade particular, a povoação tinha acesso ao pinheiro, por generosidade dos donos.
A Câmara Municipal de Almeida autorizou a construção de uma casa com a obrigação de o dono actual preservar o pinheiro.
Bastou fazer um alicerce para lhe cortar as raizes. O gigante foi morrendo e tombou.
Era o meu pinheiro de infância.
E aproveitando a boleia, saudações ao desertor do Patriarca pela terceira vez!
ABRAÇOS
HORÁCIO GONÇALVES
este texto faz-me sentir triste e contente pela minha infancia nessa terra.So quem nasceu e passou por lá e que entende o valor daquele velho e grande pinheiro. Tenho muitas recordaçoes e saudades das pessoas e do espaço da terra que me viu nascer.com muita pena minha deixei la muitos e bons amigos que nunca mais soube deles... um abraço
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