Manuel Buiça e Alfredo Costa heróis e mártires da liberdade (3)

A propósito do artigo em epígrafe (JF – 4 de Fevereiro), queixou-se o leitor Paulo J. M. Lopes, da Covilhã, em carta que me dirige (JF – 25-2), manifestando surpresa pelos meus conceitos de «certo e errado» e por «dois assassinos poderem ser considerados mártires, heróis, ou coisa que o valha».

Cumpre-me, em primeiro lugar, agradecer a crítica pois o leitor que comenta presta um serviço a quem escreve. Admito, aliás, que uma alma pia não aceite as «coisas erradas e reprováveis» dos exemplos históricos que referi. Compreendo que Paulo Lopes não seja tão indulgente como eu para com o Mestre de Avis e se condoa com a crueza de que foi vítima o Conde Andeiro; que execre a barbaridade dos conjurados de 1640 para com Miguel de Vasconcelos; que o dilacerem as dezenas de milhares de castelhanos cristãos, também católicos, que D. Nuno aviou em Aljubarrota, o que não o impediu de curar o olho esquerdo de D. Guilhermina de Jesus, queimado com salpicos ferventes de óleo de fritar peixe, milagre recente que o promoveu à santidade após séculos de defunção.

Até aqui, apesar das diferenças de sensibilidade, compreendo as divergências, mas já é temeridade pensar que os meus conceitos éticos tenham cristalizado ao nível dos que nos incutiam no ensino primário antes da Revolução dos Cravos – como afirma. Se assim fosse, julgaria assassinos os que ora tenho por heróis e mártires da liberdade, e por heróis e santos os que o leitor considera terem feito «coisas erradas e reprováveis» – o Mestre de Avis, D. Nuno Álvares Pereira, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque e os conjurados de 1640. O salazarismo, que não tinha pela vida particular apreço nem pela tortura especial repugnância, sempre abominou Buiça e Alfredo Costa enquanto incensou como heróis todos os outros. Impediu, aliás, as romagens que eram feitas ao jazigo dos regicidas.

Não partilho, naturalmente, a benevolência do leitor para com o rei D. Carlos, que considerava Portugal uma piolheira, assinou a suspensão da Carta Constitucional e foi responsável pela ditadura de João Franco a que Manuel Buiça e Alfredo Costa puseram termo, imolando o rei, o príncipe herdeiro e a si próprios, para livrarem os democratas da morte, do degredo e da ditadura.

Quanto «ao execrável regime da Primeira República» de que se lembrou enquanto lia o meu artigo – e bem –, usou – mal – o adjectivo que podia ter guardado para a família de Bragança, que deixou 75% de analfabetos, a maior mortalidade infantil e a mais baixa esperança de vida da Europa , o ensino obrigatório reduzido a três anos de escolaridade, o caos na administração pública e um ror de dívidas.

A República, cuja comemoração do 1.º centenário está em curso, herdou vários defeitos da monarquia mas devemos-lhe a passagem do ensino para 5 anos obrigatórios (Salazar havia de voltar a reduzi-los a 3, como na monarquia), a separação da Igreja do Estado, o Registo Civil obrigatório, a lei do divórcio, a igualdade social de todos os cidadãos perante a lei e o fim dos títulos nobiliárquicos.

Com ataques clericais e monárquicos, a República Portuguesa – 3.ª de toda a Europa –, transformou os vassalos em cidadãos e, apesar do azedume dos bispos, a Lei do divórcio, a criação do registo civil e o fim do juramento religioso nos tribunais foram leis que colocaram Portugal na vanguarda dos países mais avançados do mundo.

Com a República terminaram os reis hereditários e vitalícios, uma diferença que coloca este regime num patamar de referência ética, em que o direito divino é substituído pelo escrutínio do voto e em que todos nascem iguais em direitos, o que em monarquia não acontece.

Só falta, caro leitor, referir a infeliz participação na Guerra de 1914/18, numa altura em que o colonialismo era aceite normalmente, o que nos permitiu manter portuguesas as colónias, de que teríamos sido espoliados sem que os respectivos povos se libertassem.
Sem esse sacrifício não teríamos hoje países africanos de língua oficial portuguesa.
Em 1914 era um crime tão grave abandonar as colónias como viria a ser mantê-las a partir de 1960, motivo por que a história deve ser contextualizada.

Os tempos mudam. É por isso que a monarquia, embora obsoleta, como muitas outras instituições, teve o seu tempo. Por isso me recuso a julgar aqueles que o povo português considera heróis como autores de «coisas erradas e reprováveis», sem prejuízo de uma análise serena à luz dos factos e da história.

Por isso, também, considero heróis e mártires os que, sabendo a sorte que os esperava, se opuseram à ditadura de João Franco, evitando o degredo de compatriotas, as prisões arbitrárias, o encerramento dos jornais e a violência da ditadura que o rei sancionara.

Estimado leitor, muitas vezes o que transforma um traidor em herói é a sorte das armas e, neste caso, o que faz assassinos os heróis e mártires é um pequeno preconceito.

(Jornal do Fundão/Ponte Europa/Sorumbático)

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