A Manuel Buíça e Alfredo Costa, tombados pela liberdade

Estimam-se os primeiros reis na razão directa dos infiéis que abateram e das terras que lhes tomaram. O assassinato do Conde Andeiro é exaltado por ter sido útil à dinastia de Avis, tal como em 1640 se exultaria com o corpo de Miguel de Vasconcelos crivado de balas a ser atirado por uma janela. A restauração da independência do reino de Portugal transformou o homicídio em acto heróico e a vítima em traidor, tornando odioso o nome Miguel antes de o denegrir ainda mais o homónimo candidato a rei absolutista.

Ninguém lamenta hoje os crimes da evangelização do Brasil ou a crueldade com que os vice-reis da Índia subjugaram os povos indígenas e, muito menos, se lamentam dezenas de milhares de mortes que D. Nuno infligiu aos castelhanos sem que a frieza com que os aviou, a evocarem um santo diferente do seu, lhe tolhesse a canonização ou beliscasse a heroicidade, para orgulho dos portugueses.

D. João II esfaqueou ele próprio um primo e cunhado e, por ordem sua, foi executado o duque de Bragança, o bispo de Évora e muitos outros, sacrificados a objectivos políticos que fizeram dele o rei mais venerado da História de Portugal.

Hoje, condenamos sem hesitação a escravatura, o Santo Ofício, a evangelização dos índios, as perseguições aos judeus e a pena de morte, mas seríamos hipócritas se denegríssemos D. Afonso Henriques, o Mestre de Avis, Nuno Álvares, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque ou o marquês de Pombal e os evocássemos pelos que mataram e não pela forma como ajudaram a moldar a pátria que nos legaram.

Sem referir a arraia miúda, cujos tormentos não soem emocionar os povos, é oportuno lembrar os Távoras e recordar os liberais que sofreram as crueldades miguelistas, antes de prestar homenagem a Manuel Buíça e Alfredo Costa, Libertadores da Pátria Portuguesa, a quem a Associação do Registo Civil e do Livre Pensamento homenageou com um mausoléu da autoria do escultor Júlio Vaz, aonde, durante a 1.ª República, se fizeram romagens de grande fervor patriótico.

O rei de uma coroa odiada, o monarca desacreditado que desprezava o país, perante a degradação ética e a bancarrota, indiferente às vidas que sacrificava, assinou friamente a suspensão da Carta Constitucional e deu a João Franco o poder de fechar o Parlamento, encerrar jornais, reprimir manifestações e encarcerar oposicionistas para os desterrar para Timor. Ao suspender a Carta, D. Carlos responsabilizou-se pela ditadura de João Franco e decidiu o seu trágico fim.

Foi nesse contexto que Manuel Buíça e Alfredo Costa foram designados para eliminar o rei. E cumpriram, sabendo que morriam. Não foram assassinos, como os monárquicos e os sectores reaccionários proclamam. Executaram uma sentença, sentindo ser um dever cívico, e imolaram-se num acto de suprema coragem para evitarem o degredo e a morte aos correligionários e à Pátria a violência da ditadura.

A notícia do regicídio gerou uma onda de alívio nos portugueses que reclamavam, há muito, a cabeça do rei. Apesar dos riscos houve quem fosse apertar a mão do cadáver ensanguentado de Manuel Buíça que ousara libertar a Pátria de quem a designava como a piolheira.

Manuel Buíça e Alfredo Costa foram idealistas que lutaram pela liberdade. Mataram por patriotismo e caíram como heróis. Foram mártires que honraram a causa que defendiam, dando a vida pela liberdade, vertendo o sangue pela República.

O poeta José Gomes Ferreira escreveu: “Agradeço a meu pai a coragem com que, no momento do funeral do Rei, me levou a visitar os covais dos regicidas no Alto de S. João. Amo os mortos malditos e escorraçados” (in: “Calçada de Sol”)

Guerra Junqueiro, o poeta admirado por Unamuno, o que melhor exprimiu o sentimento do povo português, desabafou: «Não mataram o rei; suicidou-se. O rei era um monstro maléfico, perturbador consciente de quatro milhões de criaturas» e acrescentou, depois, «Lamento, de olhos enxutos, a execução do monarca. Mas, se tivesse o dom de o ressuscitar, não o levantaria do seu túmulo». (ALMANACH D’O MUNDO para 1909).

Alfredo Costa e Manuel Buíça foram assassinados com inaudita crueldade pela polícia do ditador João Franco depois de matarem o rei com a noção da sorte que os esperava. Sabiam que não teriam, nem esperavam ter, benefícios pessoais do acto. Quiseram, tão só, libertar a Pátria da ditadura, eliminando o rei inapto que, ao assinar a suspensão da Carta Constitucional, perdeu a legitimidade, tornou-se cúmplice da repressão e assinou a sentença da sua morte.

Honrar a memória de Alfredo Costa e Manuel Buíça não é pactuar com a violência nem fazer a apologia do homicídio, é cumprir o dever cívico de dignificar dois heróis que a ditadura salazarista, de pendor monárquico, caluniou e desqualificou. É situar o acto no tempo e explicar as circunstâncias. É pagar a dívida aos que, sem nada esperarem em troca, foram capazes do sacrifício supremo por um ideal. Não é o regozijo pela morte de D. Carlos e do príncipe herdeiro que aqui se manifesta, é o tributo de respeito pela vida imolada no altar da Pátria e pelo sofrimento e humilhação de que foram vítimas os descendentes dos regicidas cuja grandeza moral não residiu no acto que praticaram mas na força das convicções, na abnegação com que se sacrificaram e no sentido da honra.

A carta escrita por Manuel Buíça, em 28 de Janeiro, quatro dias antes do regicídio, com a assinatura reconhecida pelo tabelião Motta, na rua do Crucifixo, em Lisboa, revela bem o carácter e a dimensão ética do homem de coragem, determinado e com profundo amor à pátria. Eis um comovente parágrafo:

«(…) Meus filhos ficam pobrissimos; não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que soffrem. Peço que os eduquem nos principios da liberdade, egualdade e fraternidade que eu commungo e por causa dos quaes ficarão, porventura, em breve, orphãos».
Ponte Europa / Sorumbático

Comentários

Anónimo disse…
Texto magnifico...

ha mui tempo fiz aqui uma sugestão de os cidadãos homenagearem estes heróis com uma sua placa,

no lugar onde eles foram mortos,

pela Republica, logo da Liberdade,

e onde meia duzia de monarquicos ergueram a dos seus mortos "reais"...

Não se pode encher a boca com "Republica" e deixar estes heróis cobertos de ignominia...

abraço
e-pá! disse…
Excelente texto que enquadra historicamente o estretor da Monarquia, bem sintetizado neste parágrafo:

..." O rei de uma coroa odiada, o monarca desacreditado que desprezava o país, perante a degradação ética e a bancarrota, indiferente às vidas que sacrificava, assinou friamente a suspensão da Carta Constitucional e deu a João Franco o poder de fechar o Parlamento, encerrar jornais, reprimir manifestações e encarcerar oposicionistas para os desterrar para Timor. Ao suspender a Carta, D. Carlos responsabilizou-se pela ditadura de João Franco e decidiu o seu trágico fim."...

Cabe aqui a célebre expressão de D. Amélia, em pleno Terreiro do Paço, perante os corpos de D. Carlos e do seu filho , dirigindo-se directamente ao ditador João Franco:
"Obra vossa, senhor presidente!".

A tentativa de D. Amélia, em cima do acontecimento, no sentido de branquear a responsabilidade de D. Carlos na suspensão da Carta Constitucional e, ainda, a sua preversão como cumplice na repressão policial, pelo degredo dos oposicionistas e o seu envolvimento num vasto esquema de corrupção e esbanjamento dos dinheiros publicos (os adiantamentos reais), entre outros desmandos de uma Monarquia agonizante, não surtiu efeito o efeito histórico desejado.
Levou, tão somente, ainda sob o regime monárquico que, João Franco, fosse demitido e, rapidamente, degredado...

Hoje, sabemos que João Franco foi, antes de tudo, mais um um títere nas mãos de D. Carlos...
De facto, por detrás do regícidio de 1 de Fev 1908, há um facto incontornável:
A Monarquia já se "suicidara" há muito...
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molin disse…
Triste país aquele que homenageia assassinos, quer venham eles do povo ou sejam os próprios monarcas.

Bom texto, Carlos, muito bom mesmo, mas discordo da tese que desculpabiliza Buíça e Costa como defensores da liberdade. É certo que foi D. Carlos que assinou a própria sentença de morte com o cheque em branco passado a João Franco, mas o fim trágico de um dos mais brilhantes reis de toda a história de Portugal manchará com sangue para sempre a conquista da República no nosso país.

D. Carlos, com o seu desprezo pelo povo do qual era soberano, poderá ter tido a sua quota-parte da culpa, mas não se pode esquecer que os principais responsáveis foram os políticos que, num rotativismo escandaloso, nunca souberam fazer progredir o país na dimensão desejável nem tão-pouco regenerar-se a bem da sociedade.

Mártires? Diria mais que foram instrumentalizados por cobardes que não souberam, no local próprio e da maneira mais adequada, apresentar a melhor solução. Se fomos, alguns anos antes, o primeiro país a abolir a pena de morte, acabámos por cobrir de vergonha o exemplo de civismo que demos ao Mundo.

Sou mais defensor de que João Franco apresentou-se a D.Carlos como uma terceira via. Acabou por vencer a inveja, já que a ditadura dada a João Franco mais não era do que aquilo que Hintze Ribeiro e José Luciano de Castro tanto desejaram.

O fim da monarquia poderia ser inevitável, mas não tinha de acabar assim.
e-pá! disse…
Caro Molin:

Sem querer justificar perdas de vida, sob o manto da violência (seja de que tipo for), devemos integrar o regídio numa perspectiva dinâmica da História.

Períodos de terror antecedem, são contemporâneos ou sucedem as Revoluções.
E se o 5 de Outubro de 1910 foi a data da Revolução Republicana, no nosso País, as suas causas são remotas e - não se esconda - carregadas de uma insuportável violência social e de sucessivas (rotativas, como diz) turbulências políticas.

O regimes, ao cairem, arrastam sempre na sua derrocada convulsões sociais, mais ou menos, violentas.
Isolar Manuel Buiça e Alfredo Costa do contexto histórico da época, circunscrevendo a sua actuação às mortes do rei e do principe herdeiro, é o mesmo que confinar a Revolução Francesa a Robespierre... quando, na realidade, ela foi um tremendo salto qualitativo da Humanidade que, de modo irreversível, mudou o Mundo.

O longo percurso histórico de um povo não pode ser editado, nem interpretado (julgado), em sketches...
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Graza disse…
Parabéns pelo texto e pela homenagem, de facto, a grande maioria dos portugueses, sendo republicanos, terão daqueles dois heróis sentimentos contraditórios mercê do tratamento posterior dado pelo Estado Novo. Não se trata de fazer a apologia de coisa bárbara nenhuma, e já todos enquadraram históricamente aquele acto.

Se o Vasconcelos não tivesse sido arremessado janela a baixo, talvez a Restauração nunca tivesse existido. E por aí fora...
E Lenine, à mesma luz, foi outro herói. Também ele, em nome dos amanhãs que cantam, mandou assassinar. Mas os amanhãs não cantaram, nem com Lenine nem com a 1ª Républica. Depois, o povo revolucionário não era o Povo: era uma minoria, por certo no País e provàvelmente em Lisboa; e D. Carlos não era o bruto arrogante que o texto, com inspiração mas sem rigor histórico, descreve. Tombados pela liberdade? Qual liberdade? A de Afonso Costa? Enfim.
Ribas disse…
Gostei muito deste texto.
Embora concorde que a avaliação histórica não possa ser avaliada por “Sketches”, compreendo que, são estes homens de ideais e fortes convicções que fazem as cisões que marcam os novos episódios da História. E neste caso, não falo somente dos operacionais Manuel Buíça e Alfredo Costa (instrumentalizados ou não), mas de todo um punhado de homens resolutos nos mesmos objectivos.
A defenestração de Miguel Vasconcelos é disso outro exemplo, e aqui, já existe o tal distanciamento histórico, no entanto, todos os livros de História exultam a execução, embora se trate igualmente de um “sketche”.
Apesar da possível grandeza do acto em termos de convicção, o certo é que no início do século XX ainda existia um enorme menosprezo pela vida humana. É certo que as medidas que D. Carlos tomou foram execráveis à vista de todos os democratas, mas nada justifica os radicalismos e os atentados fáceis que se perpetraram no início do século XX em Portugal! Compreendo o contexto histórico, mas não compreendo o barbarismo do acto.

Cordiais saudações, Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt
molin disse…
Caro e-pá!:

Como apaixonado pela história, sou o primeiro a reconhecer a sua dinâmica.

E ainda bem que foca a Revolução Francesa, que realmente não se confinou ao Robespierre, mas concordará com certeza que foi a face negra da conquista dos princípios que hoje norteam a maioria das sociedades ocidentais: liberadade, igualdade e fraternidade.

A questão que aqui se coloca é o de elevar dois assassinos a heróis nacionais. Essa perspectiva é a que leva os monárquicos a considerarem D. Carlos como um mártir, quando nem um nem outros foram dignos dessas referências.
É verdade que não se pode circunscrever a queda da monarquia em Portugal ao triste episódio do bárbaro assassinato de D. Carlos e do Príncipe Herdeiro (ele, sim, uma possível solução renovadora para o problema que se tinha instalado desde a primeira geração de Braganças e da loucura castradora de Carlota Joaquina). O quadro é, de facto, bem mais amplo e vem muito mais de trás. No entanto, continuo a bater na mesma tecla: não tinha de acabar assim.
Aliás, já tive oportunidade de discutir com o Carlos - Esperança, para não haver confusão ;) - o facto de haver vários modelos de sucesso governativo em que a monarquia coabita em harmonioso ambiente democrático com a representatividade popular. Já nem vou ao exemplo mais remoto europeu da Inglaterra, mas bastava falar dos países nórdicos, da Holanda e sobretudo da Bélgica (este último onde o falecido rei Balduíno exercia um papel fundamental na congregação de duas realidades tão opostas como a flamenca e francófona, num país com a dimensão que se conhece...).

Mas isso, como se costuma dizer, são contas de outro rosário! ;)

Para não nos desviarmos do assunto principal, que é a exaltação de Buíça e Costa no papel da República, mais uma vez digo: triste do país que alicerça a fundação da sua democracia num par de assassinos que, ainda que a coberto da liberdade e de um ideal de uma sociedade mais justa.
Reconheço bem mais nos capitães de Abril esse papel, que tiveram a dignidade de não ceder à vingança a quem durante anos perpetuou torturas a quem se mostrasse de desacordo com o regime. Os tempos eram outros, dirá. No entanto, tenho quase como convicção que os presos políticos deveriam ter preferido a fome mas com o direito a expressar livremente as suas opiniões, do que a tortura num estado pseudo-democrático, herdeiro legítimo do 5 de Outubro.

E o exemplo de Lenine apresentado por JMG é sintomático de que os revolucionários nem sempre devem ser considerados como as bandeiras das revoluções. Fez mais Salvador Allende pelo comunismo no pouco tempo que esteve no poder no Chile do que todas as cabeças-de-cartaz da Revolução de Outubro e seguintes líderes.

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