Quero…comemorar a República

Quero comemorar o centenário da República cujos expoentes máximos eram idealistas e morreram pobres , recordar os homens honrados que separaram a Igreja do Estado, que herdaram um povo com 75% de analfabetos e quiseram fazer da instrução pública a pedra angular de um país, que se empenharam em alterar um sítio de vassalos servis, pobres e beatos, para fazerem uma pátria de cidadãos.

Quero recordar os legisladores que instituíram o divórcio, o registo civil obrigatório e que acabaram com os títulos nobiliárquicos. Quero honrar os que decretaram o direito à greve, estabeleceram um dia de descanso semanal obrigatório, as 8 horas de trabalho e o seguro social contra desastres no trabalho.

Quero festejar a República, recordando os capitães de Abril, que restituíram ao povo a liberdade confiscada pela ditadura fascista. Quero comemorar a queda da monarquia e o fim do poder vitalício e hereditário, para celebrar os avanços da história e o futuro, sem os pesadelos do presente.

Quero celebrar uma República onde finalmente não subsistam desigualdades de género e a democracia não se deixe capturar por corporações profissionais e oligarquias, uma república cujo poder resulte do sufrágio livre e esclarecido, sem caciques nem truques.

Quero esquecer que possa ter um presidente que compre à sorrelfa acções de empresas não cotadas e enriqueça com chorudas mais valias, que acumule ordenado e pensões e seja capaz de mandar plantar escutas num jornal para comprometer o primeiro-ministro.

Quero esquecer um primeiro-ministro capaz de calar jornalistas e de querer condicionar a comunicação social, disposto a responder à inadequação do perfil presidencial com as mesmas armas, também disposto à intriga, ao golpe e à perversão da ética republicana.

Quero esquecer juízes que deram aulas remuneradas na Universidade Moderna e os que são capazes de fazer escutas ilegais aos órgãos de soberania, os que traem o segredo de justiça e os que têm uma agenda política sem se submeterem a eleições.

Quero esquecer os magistrados que conspiram, o ministério público que se comporta como se fosse um órgão de soberania e os seus exóticos sindicalistas que ameaçam o poder legítimo e condicionam a democracia.

Quero esquecer os jornalistas que se prestam a ser correias de transmissão partidária, joguetes dos donos dos órgãos de informação e receptadores de informação criminosa.

Quero esquecer a legião de corruptos que medram à sombra da política.

Quero esquecer as alegrias boçais dos que se divertem com a desonra dos poderosos, com os atentados ao estado de direito e se pervertem a espreitar pela fechadura dos quartos de dormir.

Quero esquecer o pesadelo dos dias que correm, a amargura do quotidiano e ressarcir-me no exemplo honrado dos que legaram uma bandeira, um hino, o exemplo e a ética republicana.

Comentários

Monteiro Valente disse…
Parabéns Carlos Esperança. Excelente texto. Subscrevo-o na íntegra.
Pois comemora, Carlos, que eu aplaudo.
E esquece também o que melhor remédio não tiver.
Já do venerando, não digas que enriqueceu, o pobre.
Trocadas a patacos as benévolas acções, logo foi a investir as poupanças num fundo promissor, na porta ao lado.
Desde então as poupanças "andam desaparecidas".
avoema disse…
Esquecer um povo, excelentemente retratado nesta crónica? Somos e não queremos parecer, parecemos e utilizamos maquilhagem para o esconder. Esta jangada de pedra tem de ir para outras paragens, para percebermos que quem tem de mudar somos nós próprios, pq aquilo que podemos ter, só depende de nós, as condições básicas são boas, nós, ainda não...
avoema:
um povo é, ou vai sendo, aquilo em que se transforma todos os dias, na sua caminhada.
E a nossa já é longa.
Podemos até dizer, com bastante propriedade, esta coisa muito simples: no tempo em que a nós nos levaram para Índia, os suíços eram bonecos de neve numa encosta; os suecos vestiam peles de urso; e os finlandeses viviam em cavernas.
Onde estão hoje, todos eles, que entretanto foram à escola, e à oficina,e aprenderam com os erros, e criaram, e puxaram pelo bestunto?
E onde nos ficámos nós, que sem mais proveito colectivo conhecido, andámos 500 anos a fazer filhos às pretas?
Claro que a reduzida elite que nos levou para lá, ganhou com isso.
E tratou sempre de nos manter a todos em respeitinho: na penúria, na ignorância, na superstição, na treva.
E assim servimos um escol imperial, de cortesãos, e fidalgos, e parasitas; e também a santa igreja, que nos aspergiu de água benta, porque ao lado do império quis dilatar a fé, chamemos-lhe assim para não dizer palavrões.
Nós lá fomos, à ventura, ao cheiro da canela, à veniaga, à espera duma migalha que nunca nos tocou. E bem levados fomos. Especializámo-nos em tráfico negreiro (embora a história oficial o não reconheça) e corrompemos a alma. E deixámos de ser, enquanto não encontrarmos o modo de voltar a sê-lo.
Só que o tempo necessário é muito, e o que nos concedem é pouco.
Aparentemente tínhamos desde Abril o necessário: liberdade, raiva, fundos, dinheiros, eleições, escolhas... e demos nisto, que é um já visto.
A mesma canalha dirigente, que em lugar de dirigir o povo, antes o despreza e se põe a cavalo nele.
Nem uma elite dirigente conseguimos criar, porque nem sabemos o que é a liberdade, e confundimos merda com ervilha de cheiro.
Repare no Sócrates, que é uma besta. Verbo fácil mas inculto, limitado, novo-rico, bêbado duma modernidade plastificada, enlevado pelo poder. E no entanto nunca tivemos melhor, como governo, dado o momento da história que se vive, porque as revoluções da utopia faliram.
Os ensaios de modernização do mofo secular nacional vieram dele, mesmo se incipientes, mesmo se falhados. A justiça, a medicina, a igreja, a educação, até a economia, até o Alberto João e o que ele representa, o poder autárquico... foram pela primeira vez agitados.
Claro que o Sócrates é uma besta, e fez muita coisa mal feita, porque é igual a todos nós.
Pois bem! Veja como andam a fritá-lo em lume brando, mas constante. E não, diga-me ao menos que não é verdade, que os bloquistas e os pecepistas não se puseram também a afagar a pança do ogre da Madeira. Porque absterem-se já era bastante. Mas ajoelharam-se por meis dúzia de votos inúteis. Claro que temos que mudar, mas tudo isto é demais.
Olhe, sabe que mais?! Viva a República e desculpe esta catilinária!

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