A laicidade é uma exigência democrática

A palavra francesa (laïcité) entrou no dicionário Littré, em 1871, no ano da Comuna de Paris, que desejava a separação da Igreja católica do Estado. A violência de então, com fuzilamento de vários membros do clero, associou injustificadamente a ‘laicidade’ ao anticlericalismo, que combatia a permanência do clero nos corredores do poder.

Talvez se encontre na autonomia do poder político face às Igrejas e destas em relação ao poder político, a animosidade dos parlamentares católicos que se opuseram à lei de 9 de dezembro de 1905 que, ainda hoje, vigora, enquanto os protestantes não a combateram. Estavam vivas as recordações da monarquia católica de direito divino que, ainda hoje, despertam a nostalgia da monarquia de crentes contra a República de cidadãos eleitores.

O reconhecimento de uma ou de várias Igrejas pelos Estados democráticos, bem como a separação de qualquer confissão, não refletem maior ou menor liberdade religiosa, dado que as democracias liberais respeitam as crenças, descrenças e anti-crenças de cada um, enquanto as religiões, só obrigadas, se conformam com crenças alheias.

A laicidade dos espaços públicos e a não discriminação são uma garantia da liberdade e da igualdade das diversas confissões religiosas. O exemplo da Igreja ortodoxa, sempre presente nas cerimónias do Estado e com vasto ascendente nas instituições políticas, ou o caso extremo do Islão, em que todos os poderes do Estado, as regras de alimentação e vestuário e a obrigatoriedade da fé estão contidas no Corão, deviam servir de vacina aos países onde predominam as práticas cristãs e serem as Igrejas a exigir o cordão sanitário que as separe da política.

A Igreja católica está, hoje, longe de ser a mais ligada ao poder político, apesar da gula com que parasita os Estados com quem assina Concordatas. Além do caso patológico do Islão, existe a Igreja ortodoxa sempre ligada ao poder político (Rússia e Grécia) e no caso da Grécia, com a Constituição ainda promulgada em nome da Santíssima Trindade.

No Brasil as Igrejas evangélicas já dominam os meios de comunicação e o aparelho de Estado e, até nos EUA conseguiu o domínio do Partido Republicano, apesar do Estado não poder subsidiar qualquer culto.

No mundo globalizado, onde a diversidade religiosa passou a ser uma constante, não há outra forma de conter a vocação totalitária das religiões maioritárias, nem o proselitismo das minoritárias, sem reforço da laicidade, posição que desconhecem os oportunistas de vários partidos, na caça ao voto, e os devotos ensandecidos pela fé.

Se o nazismo quiser gozar de imunidade e impunidade basta transformar-se em religião. Em vez de líder use nomes como mulá, bispo, mufti, aiatola, cónego ou rabino e dê aos livros com que intoxica os devotos a santidade com que as religiões sacralizam os seus, apresentando-o como palavra revelada que conduz à salvação. E os antifascistas serão acusados de racismo e nazifobia.

«O Estado também não pode ser ateu, deísta, livre-pensador; e não pode ser, pelo mesmo motivo porque não tem o direito de ser católico, protestante, budista. O Estado tem de ser cético, ou melhor dizendo indiferentista» Sampaio Bruno, in «A Questão religiosa» (1907).

Ponte Europa / Sorumbático

Comentários

e-pá! disse…
À margem dos problemas da laicidade dos Estados que afligem os povos e condicionam as políticas está em franco crescimento um 'nova fé' que acaba por - questões de princípios e na praxis - não diferir muito dos conceitos medievos.

Trata-se da 'fé nacionalista' que ameaça varrer o Mundo tentando fazer um recuo à 'época pré-Vestfália'.
Não será tão importante como isso chamar-se Le Pen, Trump, Wilders,etc. ou reproduzir toscamente os tiques da aristocrática dominância dos Habsburg (que tanto sangue fizeram derramar).
Todos invocam - à sua maneira - desígnios 'sagrados'.
Uns foram Impérios que implodiram, outros pretendem, no presente, 'imperar' sobre as nossas liberdades.
Os 'imperativos patrióticos' revelam-se sempre nefastos e nunca devem ser tomados com 'categóricos'.

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