DÍVIDA PÚBLICA: um denso nevoeiro que ensombra as eleições legislativas 2019...
Apresentados pelos partidos do ‘arco parlamentar’ - na realidade uma situação não coincidente com o ‘arco do poder’ que tantos estragos fez à democracia - os respetivos programas eleitorais [link; link; link; link; link; link], verificamos que, só algumas formações políticas dissecam de algum modo (superficial ou aprofundadamente) um problema central e condição necessária para o desenvolvimento nacional e bem estar social que é a questão da denominada dívida pública (soberana).
Não vamos reproduzir os argumentos programáticos pasmados nos diferentes programas partidários que vão desde a olímpica ignorância, ao leve enunciado, até à mais abrupta ‘resolução’. Vamos, antes, colocar o problema como deve ser entendido e com as repercussões que indubitavelmente tem, isto é, trata-se de uma peça fundamental em questões de futuro para o desenvolvimento do País.
‘Libertar a sociedade’ (CDS), ‘Agora Portugal’ (PSD), ‘Portugal Melhor’ (PS), ´Avançar é Preciso’ (PCP) ou ‘Fazer Acontecer’ (BE), só para referenciar uma grande amplitude do leque partidário, pressupõe sempre a existência de condições para a concretização dos objetivos enunciados.
Interessa, antes de tudo, saber se estas condições existem no atual momento político. É dentro deste enquadramento nacional que deve ser abordado o serviço da dívida tal como está definido e estruturado.
Em primeiro lugar, convém definir condições políticas concretas e o faseamento em relação à divida pública. O alarido que a Direita fez – nos tempos duros da troika - acerca daqueles que ousaram questionar o problema mostra ao ponto que chegamos. Tentar esclarecer o contexto em que se agigantou a divida e os meios atualmente disponíveis para a honrar mereceu da Direita – aliada à conceção financeirista de Governo - o epíteto de ‘caloteiros’.
A questão da ‘dívida ilegítima’ que, no auge da crise (…por sinal tratava-se de crise que começa nos subprimes e se transforma na dívida), esteve na berlinda, não mereceu qualquer abordagem histórica e uma análise politica e económica ponderada por parte das superestruturas políticas europeias e a insistente resposta foi impor um plano austero (económico, social e de uma espartana dureza financeira).
No calor do momento, a braços com uma profunda recessão económica sobressaiu, perante um País a afundar-se, a intenção de proteger – antes do mais - os especuladores do sistema financeiro, isto é, veio à tona uma conceção financeira da política. Pior, com o desenrolar da crise, desenvolveu-se a estratégia de converter a dívida privada (também gigantesca) em dívida pública, protegendo deste modo o sector financeiro e, mais concretamente, as insolvências do sector bancário. Ao caminho percorrido para impor estas medidas - para simplificar razões – chamou-se ‘austeridade’, que significa, tout court, o empobrecimento de um País.
Finda a intervenção externa que - convém não esquecer - foi ditada sem contemplações pelo sistema financeiro internacional, existe, no presente, um distanciamento suficiente para analisar, primeiro os PEC’s que o governo de Sócrates teve de mendigar junto da UE (mais concretamente perante Angela Merkel) e depois um bárbaro e destruidor ‘Memorandum de Entendimento’, violador da soberania e a causa remota dos enormes sacrifícios que foram endossados aos portugueses e portuguesas que mereceu a cumplicidade governativa da Direita e nos foi imposto pelas instâncias internacionais.
A partir daí começa um lento e insidioso processo de ‘aceitação’ da divida pública que de modo descontrolado e progressivamente se foi acumulando (entre 2008 e 2014 - duplicou) e geram-se sobre esta questão vários tabus, muitas lacunas e alguns desconfortos.
A partir daí começa um lento e insidioso processo de ‘aceitação’ da divida pública que de modo descontrolado e progressivamente se foi acumulando (entre 2008 e 2014 - duplicou) e geram-se sobre esta questão vários tabus, muitas lacunas e alguns desconfortos.
A dívida pública cresceu desmesuradamente, desde 2008, à custa de hesitantes respostas desenhadas, quer pelo Governo de José Sócrates, quer por ditames europeus (de índole neoliberal) que nortearam a intervenção europeia em Portugal, associada ao FMI. Isto é, numa primeira fase, delineou-se uma resposta à crise segundo o modelo keynesiano que o poder financeiro tratou imediatamente de inviabilizar para impor a absoluta proteção do sector bancário (e dos fundos de investimento).
Esta ondulante e contraditória resposta acelerou o crescimento da dívida e uma vez instalada a crise recessiva esta ‘virou-se’ para a dívida pública, criando a Países como o nosso (Sul da Europa) uma sensação de prevaricação ('viver acima das possibilidades') e dando a impressão que se soltou as rédeas ao atirar dinheiro para cima dos problemas para, logo de seguida, aparecer a cobrá-lo com elevados juros e imposições políticas.
Ainda no Governo Passos Coelho/Paulo Portas veio à luz do dia o chamado ‘manifesto dos 74’ link que alertava para a situação criada, no País, em relação ao problema da dívida.
Este manifesto que, desde logo, propõe uma ‘reestruturação honrada e responsável’ onde se preconiza um abaixamento das taxas de juro, a extensão das maturidades para 40 anos (ou mais) e uma reestruturação de divida acima dos 60% do PIB tendo por base a ‘divida oficial’, não pode ser considerado uma elucubração dos ‘radicais de Esquerda’.
Se tivermos em conta as personalidades subscritoras do manifesto como sejam o Prof. Jorge de Miranda (constitucionalista), Prof. Alfredo de Sousa, general Pinto Ramalho (ex-CEME), almirante Melo Gomes (ex-CEMA), Eugénio da Fonseca (presidente da Cáritas), Lídia Jorge (escritora), Bagão Félix (ex-ministro das Finanças), a Profª. Manuela Ferreira Leite (ex-líder do PSD), entre muitas outras, verifica-se que os subscritores não podem ser catalogados como perigosos esquerdistas, alimentados por ideias radicais.
Na verdade, o manifesto tinha a intenção de derrubar um tabu – um pouco ao estilo do ‘não há alternativa’ - que tinha descido sobre um grave problema nacional e se mostrava capaz de – a médio prazo - comprometer o futuro do País.
Durante o mandato do XXI Governo Constitucional que, em 2015, herdou as condições financeiras e económicas resultantes da intervenção externa, entre elas, o agravamento da dívida, o assunto foi ‘esfriando’. À partida (em 2015) não existiram condições – internas e fundamentalmente externas - para integrar esta questão nas ‘posições conjuntas’ da Esquerda que suportou a legislatura.
Começou a ganhar terreno com Mário Centeno a ideia que, muito embora difícil, a divida seria ‘pagável’ se tivéssemos ‘contas certas’ e os mais ousados (temerários) até sonhavam com uma reversão rápida à custa de um ‘superavit orçamental’.
Na verdade, o PS inscreve como objetivo que em 2023, isto é, no fim da próxima legislatura, o ratio da dívida em relação ao PIB, esteja abaixo dos 100%. Só não explica como será isso possível sem prejudicar o desenvolvimento económico e social do País.
Interessa, agora, deixar bem claro que o esforço de equilíbrio orçamental sustentado por PS, BE, PCP e PEV em sucessivos Orçamentos de Estado não foi ditado pela ideia de satisfazer a gula do sector financeiro mas – uma outra coisa bem diferente – tinha como finalidade ‘arrumar a casa’ para desenvolver o País e criar melhores condições de vida para os portugueses e portuguesas.
Deste modo, ‘anestesiou-se’ a necessidade de uma análise politicamente séria e tecnicamente idónea sobre a sua sustentabilidade da elevada dívida entretanto avolumada e optou-se por endossar os parcos ganhos que se verificaram com um crescimento (ainda que ténue) da Economia, para a finalidade última de cumprir o serviço da dívida, tal qual como está definido (em taxas e prazos), baseando-se num argumento frequentemente esgrimido pela Direita – a credibilidade externa.
O PS deixou cair a intenção de reestruturar a dívida e encobre essa atitude (escolha) através de uma acomodação à remota possibilidade de desenvolvimento, que será necessariamente anémico. A ida de Centeno para a presidência do Eurogrupo poderá justificar estas mudanças de estratégia.
A confusão paulatinamente estabelecida entre o serviço da dívida e o reconhecimento da mesma não tem beneficiado o País em termos de desenvolvimento e correndo o risco não credibilizar coisa alguma, andar sempre a viver na corda bamba e postergar para as calendas gregas o desenvolvimento.
O caminho para o ‘défice zero’ – uma meta do Governo - foi uma via-sacra de episódios de esforço produtivo, reposições de direitos, mas muito menos efectivo nas questões de soberania e a oculta assunção de um serviço de dívida insuportável, alimentando o ‘custe o que custar’ (da terminologia ‘passista’). Este trajecto não constitui um objectivo político que prime pela coerência.
O tabu da dívida pública não tem razão de existir tanto mais que a Comissão Europeia levantou a questão ao querer instituir novas regras, isto é, a redução anual de um vigésimo do valor da dívida pública, em percentagem do PIB, que exceda os 60% estabelecidos no Tratado de Maastricht. O estabelecimento destas novas regras – cuja ‘lógica financeirista’ não vamos discutir – constituem uma oportunidade perdida para Portugal (e outros Países do Sul da Europa) voltarem à discussão da reestruturação das suas dívidas. Tanto mais que, o ‘momento económico’ europeu mostra grandes debilidades e, para a situação do nosso País, um alívio negociado em relação ao serviço da dívida seria um estímulo major para o crescimento económico, a partir do investimento público.
Na realidade, o serviço da dívida tal como está definido colide com a capacidade de desenvolvimento do País, nomeadamente, para os partidos e forças políticas que defendem a necessidade de um forte investimento público para consegui-lo. Se partirmos desta premissa verificamos que o ‘modelo’ que tem sido adotado é coxo e não tem futuro a não ser que a Esquerda perca o receio de levantar a discussão sobre este tema, considerando-o decisivo para definir o ‘seu’ programa político de governação e diferenciar-se da Direita.
Na verdade, no mesmo ano em que foi publicado o manifesto dos 74, atrás referido (2014), os custos só com juros (deixando de lado as amortizações calendarizadas e outras antecipadas) representaram mais de 4 % do PIB, isto é, aproximando-se de sectores com maior peso no Estado Social, como sejam a Saúde ou a Educação.
As Eleições Legislativas de 2019 seriam a oportunidade soberana para trazer à liça e discutir a reestruturação da dívida (também soberana). A Direita nunca o fará e, se acaso tal vier a ocorrer, são sobejamente conhecidas as chicanas argumentativas, para proteger os ‘investidores financeiros’. Por outro lado, a Esquerda não pode ficar ‘anestesiada’ com os sucessos orçamentais e passar a acreditar no Pai Natal, isto é, numa prestigiosa performance de Mário Centeno que faça desaparecer as presentes condições que tornam insuportável para o desenvolvimento o atual serviço da dívida.
É que o problema não deixa de existir só porque evitamos falar dele, mantemos nos equilibrismos instáveis e deixamos correr o marfim.
Tal como na campanha eleitoral das europeias pouco se falou na Europa nestas Legislativas um factor decisivo para o desenvolvimento vai permanecer fora dos debates.
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