MADEIRA: A Autonomia Regional e os equívocos até ao 25 de Abril…

Gravura do Funchal (século XIX)

A Autonomia da Madeira domina, há muitos anos, a chamada ‘política madeirense’. Trata-se de um ancestral património insular que tem sido vítima de múltiplas apropriações e de constantes distorções que vão desde a abjeta submissão até ao irrealismo dos movimentos independentistas.

A mais recente e abusiva apropriação (existiram outras no passado) é a protagonizada pelo PSD-Madeira (PSD-M) que se auto-intitula o ‘campeão da Autonomia Regional’. É muito linear, primitivo e enganador o silogismo disjuntivo de que quem não for, ou não apoiar, o PSD-M quer entregar a Ilha aos ‘senhores do Continente’. Raciocínios deste tipo têm infestado a política regional e nas últimas eleições este facto foi (ainda) bem visível, desfocando e obscurecendo a discussão sobre os caminhos do futuro para a Madeira.

Hoje, começa a ser bem nítido que a Autonomia madeirense é uma falsa questão e que essa conquista de Abril (convém sublinhar) está constitucionalmente consolidada, não sendo um obstáculo político nem um ‘empecilho’ para o desenvolvimento da Madeira. Como tudo na vida o atual quadro não é uma obra acabada mas, no essencial e na prática, estão consagrados os princípios fundamentais autonómicos.
Por outro lado, todas as forças partidárias que estão implantadas no espaço político madeirense, e disputaram as eleições regionais, defendem o modelo autonómico o que torna ainda mais caricatural a destrinça que o PSD-M pretende estabelecer.

A luta pela autonomia madeirense é muito longa, recheada de impasses, contradições, traições, vilezas, mas também de firmeza, abnegação, constância e heroicidade e - ao contrário do que tem sido propagandeado - dever ser entendida como um património político, social e cultural madeirense de índole coletiva, onde todas as apropriações são abusivas. Há uma evidência que deve ser (re)afirmada: a luta pela autonomia não começou com Alberto João Jardim, nem acaba com o seu bem visível ocaso.
 
Vamos tentar caracterizar o quadro que a Madeira vivia aquando do 25 de Abril, altura em que a Autonomia se tornou o ‘cavalo de batalha’ dos sucessivos governos regionais dominados pelo PSD-M.

Tudo começa com a natividade do conceito de ‘Regionalismo’ e remonta aos finais do século XIX a par com outras conceções opostas como, p. exº., o nacionalismo e, para mal dos nossos pecados, do autoritarismo. Estes 3 ingredientes estão hoje bem presentes, por exemplo, na ‘questão catalã’ e as circunstâncias que envolvem os mais recentes desenvolvimentos deveriam influenciar uma cautelar abordagem do tema.
Hoje, em Portugal, esta questão está de certo modo mascarada sob uma ambígua e faseada ‘conceção descentralizadora’, um nítido disfarce para a ausência de uma regionalização, constitucionalmente estabelecida e sempre adiada.

Retomando o ‘caso madeirense’ o sinuoso processo autonómico – fundamentalmente uma questão à volta do conceito de ‘auto-governo’ – foi subsidiário de longos debates políticos, económicos e culturais que tiveram vários momentos, envolvendo múltiplos protagonistas, forças político-sociais e associações e movimentos culturais.

A Revolução Liberal (1820) deve ser considerada o marco inicial de todo o percurso autonómico madeirense.
Logo em 1821 (no ano seguinte à implantação do liberalismo lusitano) publica-se, no Funchal, o jornal ‘Patriota Funchalense’, onde Nicolau Caetano Pitta, médico madeirense e convicto liberal (acabou desterrado pelos ‘absolutistas’ em Angra do Heroísmo), pontifica na denúncia de uma situação colonial e traduz publicamente o sentimento de orfandade de assola os madeirenses.

E a deriva colonial que assolou a Madeira – não foi propriamente uma ‘invenção’ do PSD-M – e dura formalmente até ao ano de 1821 (Lei de 9 de Março) quando a Ilha deixou de estar dependente do departamento das colónias e passa a ser considerada uma ‘província do continente’.
Uma prova acabada desta situação colonial – na vertente económica e financeira - é a ‘moeda insulana’. Em vigor desde 1875 a ‘pecúnia insulana’ esteve em vigor até ao final do século XIX (1887), com o ágio (desconto) aproximado de 25% o que significa uma taxação global indireta que incidiu sobre os povos insulares (também vigorou nos Açores até 1931), um pouco na esteira do que se verificou com o Banco Nacional Ultramarino e as ex-colónias.

O contrato de colonia é uma outra marca madeirense e está presente desde os finais do século VVII sendo a resposta insular para uma tentativa de diversificação da produção agrícola, tornando-se visível o seu surgimento quando uma nova atividade económica nasce para acorrer ao declínio da cana-de-açúcar: a cultura da vinha.
Acresce a este um outro cultivo - o da banana - contemporâneo do ciclo inicial do açúcar, mas este só ganha expressão comercial significativa no século XX e ainda uma outra atividade económica singular e longeva - a indústria dos bordados que foi incrementada em meados do século XIX.
Este o quadro produtivo agrícola que gerou constantes problemas sociais e de desenvolvimento insulares.

Este contrato de colonia serviu para que os proprietários rurais se urbanizassem (na sequencia do declínio da produção açucareira) deixando as suas terras entregues à administração de um feitor estando o trabalho e as benfeitorias ao encargo dos servos que trabalhavam os campos, faziam as colheitas e, finalmente, entregavam metade da produção ao senhorio.
Esta iniqua distribuição levaria à ‘revolta dos colonos’, em tempos muito recuados (1818), isto é, no dealbar da Revolução Liberal, que reclamavam uma outra partilha da produção agrícola e na surdina o espectro de autonomia que os libertasse da férrea mão de Lisboa.
 
Por sua vez, os proprietários madeirenses estavam nas mãos das grandes empresas inglesas (p. exº. as famílias Blandy, Hinton, Leacock, etc.) que exportavam a produção (vinícola, açucareira e de bordados) e impunham os seus interesses.
Tal enviesamento só poderia levar a uma situação ruinosa da economia madeirense, explorada pelo exterior, e perante tal descalabro esta virou-se para uma penosa subsistência.

O sistema produtivo agrícola – e as pequenas estruturas monopolistas agro-industriais nas mãos dos ingleses – criaram uma legião de pobres e deserdados, os ‘vilões’, cuja única saída foi a emigração. Começou cedo esta rota que levou os madeirenses a procurar outros destinos como são exemplos, as ondas migratórias para o Brasil, Angola, Curaçau, Venezuela, África do Sul, etc. .
O dito Continente nunca foi uma destino frequente, ou atrativo, para o turbilhão das correntes migratórias dos madeirenses que durante séculos determinaram não só uma ‘convulsão demográfica’, mas foram o distante sustentáculo de muitas famílias, essencialmente nos meios rurais, onde o analfabetismo e o alcoolismo grassavam.

As pretensões anglófonas sobre a Madeira colhem da Lenda de Machim que reivindica a descoberta da Madeira (no final do século XIV – logo antes de Zarco) por Roberto Machim e Ana Arfert, dois jovens ingleses apaixonados,  que teriam desembarcado na localidade que hoje é Machico. Trata-se de uma espécie de ‘sebastianismo britânico’.
Londres aproveitou e criou, de facto, no Funchal uma poderosa ‘feitoria inglesa’ e a sua Royal Navy patrulhava tranquilamente as águas territoriais madeirenses, tendo inclusive ocupado militarmente a Ilha por duas vezes, nos primórdios do século XIX (a última das quais por 7 anos), aproveitando o ensejo das ‘guerras napoleónicas’, gerando na região um clima de ‘britanofobia’ (de que A J Jardim viria a tirar partido muitos anos mais tarde).

Só com o advento da República (1911) os madeirenses tiveram a ousadia de apresentar um ‘Ultimatum’ aos ingleses ato que, devido às debilidades iniciais deste novo regime, não teve quaisquer consequências.
Mais eficaz do que este ultimatum foi, primeiro, a praga do oídio, logo secundada pela da filoxera (nos finais do século XIX), que destruiu as castas nobres do vinho madeirense (boal, sercial, verdelho, malvasia, terrantez e bastardo) levando a uma grave crise económica e a uma significativa debandada dos comerciantes ingleses.

Durante a I República a situação insular manteve-se inalterada embora o novo clima político propiciasse o surgimento de diversos fóruns (restritos) que - entre outras coisas~- reivindicavam a autonomia da Madeira. São exemplos destas movimentações, clubes e associações, por exemplo, as ‘tertúlias do Golden Gate’ que agregavam as elites urbanas madeirenses, o ‘grupo do Kit Kat’ onde se reuniam alguns intelectuais (jornalistas, artistas e escritores) e o Ateneu Comercial do Funchal que associava uma corrente regionalista de pequenos e médios comerciantes madeirenses que começam por desenvolver ações artísticas e de lazer para, logo de seguida, passarem à intervenção na política insular sempre tendo como pano de fundo a regionalização e a autonomia.

O Estado Novo foi trágico para a Madeira. E a saga isolacionista e depreciadora começa ainda no período de ditadura militar decorrente da revolta de 28 de Maio 1926.

Em Fevereiro de 1931 ocorre na Madeira aquela que ficou conhecida como a ‘Revolta da Farinha’ que representa uma reação popular ao fim do regime livre de importação de cereais e farinha, criando-se um regime de monopólio. Esta medida interrompeu a aquisição normal da(s) farinha(s) e viria a determinar um significativo aumento do preço do pão. Ora, o pão ou, melhor, a falta dele, foi durante a evolução histórica da Humanidade o motor de todos os desacatos e até de revoluções.

Assim sendo, a força militar que foi enviada para a Madeira a fim de 'pacificar os ânimos' depois da ‘Revolta da Farinha’, despoletada pelo chamado ‘decreto da fome’, acabaria por estar no cerne da ‘Revolta dos Deportados’, mais conhecida pela ‘Revolta da Madeira’.
Rapidamente um conjunto de oficiais deportados, como foi o caso de general Sousa Dias, conseguiram dar corpo a um sentimento de revolta popular e organizar uma rebelião, dentro do espirito do chamado ‘reviralho’, contra a ditadura militar implantada em 28 de Maio de 1926.
A repressão - a que não é estranha a mão de Salazar - foi feroz e cruel. Desta intervenção resultaram sequelas e melindres que ditaram um interregno que vai de 1931 a 40, onde a Madeira foi pura e simplesmente ostracizada como medida de represália pela ousadia de tentar libertar-se da ditadura.

Pelo meio acontece a chamada ‘Revolta do Leite’ (1936) como reação popular à infestação da economia madeirense com mais um monopólio, o do leite e derivados, criando-se a Junta dos Lacticínios, logo popularmente apelidada como a ‘Junta dos Latricínios’ passando a regular o sector e definir os preços do leite e derivados de acordo com as grandes empresas do ramo.
Desta revolta que adquiriu grandes dimensões e foi totalmente silenciada pela imprensa (já estava em vigor a Constituição de 1933 e a censura) resultaram deportações em massa de madeirenses para Lisboa, Açores e Cabo Verde.

O Estado Novo manteve a Madeira sob um regime onde o desprezo e a ausência de intervenção (abandono) pontificavam sob um iníquo estatuto de marginalização.
De referir que entre 1935 e 1939 Salazar – que mais tarde viria a ser o paladino da ‘neutralidade colaborante’ [durante o conflito 1939-45] ‘ofereceu’ a Ilha como um destino idílico para uma vertente muito especial – o ‘turismo nazi’.
Entre 1935 e 37 a Madeira funcionou como local de acampamento de férias das juventudes hitlerianas [como se fossem simples escuteiros] que se acoitavam na Quinta Olavo (residência do cônsul alemão no Funchal).
Ora aqui está uma sibilina maneira de humilhar os democratas madeirenses (o Funchal foi bombardeado duas vezes por submarinos alemães em 1917) e de marcar a utilização da Madeira como um entreposto para outros ignóbeis voos que o colaboracionismo salazarista disfarçou e tentou esconder ‘à posteriori’.

As ‘Obras Públicas’ – um paradigma da governação e propaganda salazarista – quando inadiáveis, foram essencialmente dirigidas para uma componente de afirmação da soberania continental (nacionalista), isto é, contemplaram o Tribunal, a Alfandega, o Liceu ‘Nacional’, a Capitania do porto, entre outras e confirmam este contexto.
Aliás, quando olhamos para os Governadores civis do Funchal que existiram durante o Estado Novo (os três últimos, por exemplo, o comandante Camacho de Freitas, o coronel Braamcamp Sobral e comandante Farrajota Rocheta) constatamos a preocupação de fazer ocupar este cargo, pretensamente ‘civil’, por personagens oriundas do sector militar – a guarda pretoriana do regime.

Este um esboço da situação vivida na Madeira quando ocorre o 25 de Abril. Em 1974, uma das questões indissociáveis da sociedade madeirense era a necessidade (conjugada) de autonomia para conseguir o desenvolvimento (económico, social e cultural).

Em 1976, o Dr. Alberto João Jardim, à frente do PSD-M e com a bênção da Igreja, inicia uma nova saga autonómica – que esteve em julgamento nas últimas eleições regionais - marginalizando um conjunto de ilustres e dedicados madeirenses, verdadeiros paladinos da regionalização, dos quais cito três que representam áreas autonómicas críticas e merecem a evocação: o Dr. Fernando Rebelo (política), o economista João Abel de Freitas (desenvolvimento) e o artista António Aragão (cultura).

Em 1976 os madeirenses não foram capazes de capitalizar este imenso espólio histórico e de luta e aceitaram seguir em direção à regionalização pela estreita e sinuosa via paroquial. Mas esta ‘saga autonómica jardinista' será objeto de uma outra abordagem.

Comentários

Uma suculenta aula de História.

Obrigado.

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