O bicentenário do constitucionalismo português
O dia de hoje está escrito a letras de ouro no meu devocionário. Duzentos anos passados sobre o fim do absolutismo monárquico é uma data emblemática e um dos raros momentos históricos do calendário da liberdade, em Portugal.
Tinha umas ideias alinhadas para o texto de um livre-pensador que não deixaria passar a data sem a celebrar, quando fui agradavelmente surpreendido por um grande Historiador e indefetível amigo, Amadeu Homem, que escreveu um texto irrepreensível na forma e suculento na substância, que vai enriquecer este mural.
Quaisquer outras palavras seriam supérfluas e, durante as próximas 24 horas não haverá aqui nova publicação. Fica o texto de Amadeu Homem:
***
NO BICENTENÁRIO DO CONSTITUCIONALISMO PORTUGUÊS : O SINÉDRIO E O VINTISMO
(Para os meus Amigos Carlos Esperança e Firmino Silva)
Num texto académico em que procurei explanar a “razão e sentimento na evolução espiritual de Ramalho Ortigão”, escrevi, um dia, estas palavras: “Quem não conhece o Porto? O Porto é uma cidade-gavião de asas de pedra escura, talhada em fachadas austeras e nidificada no cocuruto de arribas agrestes que descem quase a pique até ao Douro. Se as angulações das penedias pudessem narrar memórias do passado, contariam elas que D. Pedro IV, o Libertador, lhes esquadrinhou cada desvão, lhes sondou cada exíguo parapeito, com o fim de resistir ao implacável cerco e aos ataques do seu irmão Miguel, rei absoluto desde 1828”.
Mas a nossa memoração começa antes. Regressemos a 1816 e procuremos avaliar, por esse tempo, o perfil da nossa Grei. Desvalimento e vexame – eis o que apuramos. O Príncipe, D. João VI, acompanhado pela rainha dementada D. Maria I, tinha abandonado Portugal, em 1807, quando pressentiu as tropas francesas de Junot às portas de Lisboa. A melhor parte das três Ordens, clero, nobreza e algum povo escolhido, dirigiu-se apressadamente aos barcos que espaireciam no “mar da palha”, fronteiro a Lisboa, e vogaram para o Brasil. Bem se poderia dizer, sem faltar à verdade, que o troço do exército napoleónico chegado a Lisboa não apresentava capacidade bélica; era, pelo contrário, uma tropa esfarrapada e famélica que irrompia pelas ruas da nossa capital. Apesar disso, não houve quem lhe fizesse frente, e Junot chegaria a acalentar o projecto de se fazer coroar rei de Portugal.
Seguiram-se as outras duas invasões, até aos finais de 1811, respectivamente comandadas por Soult e Massena. Portugal, ajudado pelo auxílio militar inglês, iria conseguir esconjurar a tentativa de ocupação francesa. Mas a sua vitória era comparável à de Pirro: expulsos os inimigos franceses, pelas leis da guerra, ficavam entre nós os aliados da paz, os ingleses, igualmente vorazes e implacáveis. A família real tinha desertado e encontrara no Brasil um “modus vivendi” que parecia agradar-lhe, satisfazendo-lhe todos os hedonismos. Portugal ficara entregue a si mesmo, ou seja, aos medíocres “senhores do Rossio” que a família real avalizava a partir do Brasil e, sobretudo, ao poderoso William Carr Beresford, ao qual o Príncipe – e depois rei D. João VI – cumulava de benesses e outorgava toda a sua confiança. Operava-se uma completa inversão de hierarquias territoriais. Quase se poderia dizer que Portugal era agora a colónia da antiga colónia do Brasil, para o qual se tinha deslocado o eixo da hegemonia e do comércio marítimo. Este facto convinha o mais possível ao mercantilismo inglês, que desde sempre desejara o franco e irrestrito contacto com as Terras de Vera Cruz, as quais se revelaram cerradas até ao momento da transferência do Corte portuguesa.
Sob a governação de Beresford, exercida em nome de D. João VI mas verdadeiramente favorável aos interesses britânicos, Portugal ia definhando a olhos vistos. A importância do porto de Lisboa declinara e os impostos aduaneiros entraram em profunda e irreversível recessão; as sangrias de dinheiro, pressionadas pelos pedidos insistentes da Corte no Brasil, eram constantes; o exército assistia às diferenças de soldo entre os militares portugueses e ingleses, sempre favoráveis a estes últimos; a vida cultural era uma inexistência. Numa palavra: o declínio era total.
O ano de 1817 revelou-se altamente nefasto. Beresford sentia a surda revolta da população portuguesa e procurava sustê-la com o exercício de um poder absoluto, exercido em nome do rei distante, o qual, no entanto, lhe cobria todos os excessos. As opiniões de cada um eram vigiadas de perto por uma rede de denunciantes, montada pelo próprio Beresford. Foi assim que chegou ao seu conhecimento que estaria em marcha uma conspiração contra o seu poder pessoal e favorável ao regresso da Casa Real ao país. Nesse suposto movimento estariam envolvidos alguns oficiais portugueses. Tais rumores careciam de confirmação, sobretudo na parte em que envolviam a figura de Gomes Freire de Andrade. Era este um distintíssimo Oficial de exército português, que tivera de servir compulsivamente nas fileiras das tropas napoleónicas e nelas se cobrira de prestígio. Mas não era a fama militar de Gomes Freire o único motivo que despertara as prevenções de Beresford; a razão mais impositiva radicava no facto de se saber que ele desempenhava o cargo de Grão-Mestre da Maçonaria portuguesa. Sendo o ideal maçónico eivado de valores liberais, tal chefia não poderia deixar de suscitar a má vontade ou até mesmo o ódio larvar de Willliam Carr Beresford. Isto explica que sem mais aprofundadas indagações tenha sido dada ordem de prisão a Gomes Freire e aos supostos implicados na conjura. Os simulacros de julgamento foram realizados à margem das mínimas garantias de imparcialidade ou de um desejo sincero colocado ao serviço do apuramento da verdade. Do que se tratava era de atemorizar os anseios libertadores da população e de sufocar todos os assomos da dignidade nacional. É isto que explica o bárbaro assassinato político de Gomes Freire de Andrade, enforcado em 18 de Outubro de 1817 junto ao forte de S. Julião da Barra, assim como o sacrifício infame de mais onze vítimas no Campo de Santana, através do mesmo processo que tinha roubado a vida ao distinto Oficial português.
Não foi alcançada, no entanto, a intenção de sufocar pelo medo os objectivos patrióticos. Assim, logo no ano seguinte se organizou no Porto um centro de análise e de reflexão da quase desesperada situação política portuguesa. O primeiro responsável pela criação desse centro, denominado Sinédrio, foi o jurista Manuel Fernandes Tomás. Foi ele quem congregou nessa organização um feixe de boas vontades, de que poderão destacar-se, entre outros, os nomes de José Ferreira Borges, José da Silva Carvalho e José Ferreira Viana. O Sinédrio foi fundado em 22 de Janeiro de 1818. Os seus elementos, inicialmente em número de treze, entenderam dever reunir-se nos dias 22 de cada mês, num jantar que decorreria no Porto – mais precisamente em S. João da Foz. Todos se obrigavam a guardar sigilo para com terceiros do que lá fosse conversado. A intenção inicial consistiu na reflexão sobre a desvalida situação política e social do país, atentando igualmente no que se fosse passando na vizinha Espanha. A maior preocupação era a de encaminhar no melhor sentido as manifestações patrióticas de teor anárquico ou desarticulado, obstando a que a omnipotência de Beresford pudesse provocar novas vítimas. O Sinédrio entendeu igualmente não permanecer passivo no caso de eclodir um movimento revolucionário, avocando a função de encaminhar com realismo e sensatez um possível caudal reivindicativo, sem jamais pôr em causa a dinastia de Bragança.
As periódicas análises do Sinédrio foram-se fazendo no sentido de uma cada vez maior clarificação. Tornava-se evidente que Portugal nunca poderia recuperar o seu estatuto de potência marítima e colonial se a família real continuasse no Brasil, uma vez que eram os portos brasileiros a acolherem agora os navios mercantes que anteriormente carregavam e descarregavam em Lisboa. Era, de resto, uma alternativa de há muito desejada pela Inglaterra. Os homens do Sinédrio também reconheceram que nunca seriam repostas as condições de normalidade nas fileiras do exército se persistisse nele a presença de efectivos ingleses. É que, como foi dito, os soldos pagos a estes eram significativamente mais altos do que os que eram pagos a militares portugueses, constituindo isto um permanente motivo de reclamação e de mal-estar. Finalmente, era óbvio que sendo Beresford a personalidade dominante na condução dos destinos pátrios, jamais estes convergiriam com as mais prementes necessidades e anseios da Nação. Por isso, o programa mínimo que se foi lentamente definindo no Sinédrio exprimia-se pelo retorno da família real ao país e pela expulsão de Beresford e das tropas inglesas do nosso território. É de crer que tenha sido Manuel Fernandes Tomás o principal responsável pela conversão deste programa mínimo num outro projecto mais ambicioso : o de uma revolução constitucionalista. A reivindicação de um diploma constitucional comportava o significado de uma verdadeira mutação quanto à natureza político-social das coisas. No caso do constitucionalismo vingar, isso teria o significado de uma mudança irreversível na vivência colectiva: a monarquia absoluta, de essência tradicionalista e de substância aristocrática, cederia o passo a uma monarquia constitucional, de essência contratualista e de substância burguesa.
Quer a transformação viesse a fazer-se nos termos do programa mínimo ou do programa máximo, uma coisa era dada por assente: ela teria de realizar-se através de uma revolução. Sendo o Sinédrio fundamentalmente composto por juristas, foi necessário alargar-lhe o número de efectivos e integrar nele uma ala militar, à qual vieram a pertencer personalidades como as do Brigadeiro António da Silveira Pinto da Fonseca, Coronel Bernardo Sepúlveda e Coronel Sebastião Drago de Brito Cabreira. A partir de então, geraram-se assinaláveis tensões no interior do Sinédrio. A ala dos juristas, encabeçada por Manuel Fernandes Tomás, procurou fazer vingar a tese da necessidade de uma revolução constitucionalista; por seu turno, a ala dos militares não aspirava a mais do que à expulsão de Beresford e das tropas inglesas e ao regresso a Lisboa da Corte que se encontrava no Rio de Janeiro. Ou seja: a parte civil pretendia encaminhar-se para uma ruptura controlada, enquanto a parte militar não revelava vontade em vibrar no tradicionalismo um golpe de morte.
Neste contexto, foi decisivo o realismo e o pragmatismo de Manuel Fernandes Tomás. Entendeu ele que a questão do constitucionalismo deveria ser adiada para as Cortes e que a prioridade era preparar tudo para que a revolução acontecesse. O seu modo de ver revelou-se acertado. Em 24 de Agosto de 1820, a revolução manifestava-se no Campo de Santo Ovídio e nas ruas do Porto. Com ela chegaria a Constituição de 1822 – e através desta irromperia a contemporaneidade na vida colectiva. A soberania nacional, a cidadania, o germe da igualdade perante a lei, a submissão de todos os poderes a um quadro legal uniforme e a independência do acto de julgar foram proclamadas, entre nós, pela primeira vez.
Tinha umas ideias alinhadas para o texto de um livre-pensador que não deixaria passar a data sem a celebrar, quando fui agradavelmente surpreendido por um grande Historiador e indefetível amigo, Amadeu Homem, que escreveu um texto irrepreensível na forma e suculento na substância, que vai enriquecer este mural.
Quaisquer outras palavras seriam supérfluas e, durante as próximas 24 horas não haverá aqui nova publicação. Fica o texto de Amadeu Homem:
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Amadeu Carvalho Homem |
NO BICENTENÁRIO DO CONSTITUCIONALISMO PORTUGUÊS : O SINÉDRIO E O VINTISMO
(Para os meus Amigos Carlos Esperança e Firmino Silva)
Num texto académico em que procurei explanar a “razão e sentimento na evolução espiritual de Ramalho Ortigão”, escrevi, um dia, estas palavras: “Quem não conhece o Porto? O Porto é uma cidade-gavião de asas de pedra escura, talhada em fachadas austeras e nidificada no cocuruto de arribas agrestes que descem quase a pique até ao Douro. Se as angulações das penedias pudessem narrar memórias do passado, contariam elas que D. Pedro IV, o Libertador, lhes esquadrinhou cada desvão, lhes sondou cada exíguo parapeito, com o fim de resistir ao implacável cerco e aos ataques do seu irmão Miguel, rei absoluto desde 1828”.
Mas a nossa memoração começa antes. Regressemos a 1816 e procuremos avaliar, por esse tempo, o perfil da nossa Grei. Desvalimento e vexame – eis o que apuramos. O Príncipe, D. João VI, acompanhado pela rainha dementada D. Maria I, tinha abandonado Portugal, em 1807, quando pressentiu as tropas francesas de Junot às portas de Lisboa. A melhor parte das três Ordens, clero, nobreza e algum povo escolhido, dirigiu-se apressadamente aos barcos que espaireciam no “mar da palha”, fronteiro a Lisboa, e vogaram para o Brasil. Bem se poderia dizer, sem faltar à verdade, que o troço do exército napoleónico chegado a Lisboa não apresentava capacidade bélica; era, pelo contrário, uma tropa esfarrapada e famélica que irrompia pelas ruas da nossa capital. Apesar disso, não houve quem lhe fizesse frente, e Junot chegaria a acalentar o projecto de se fazer coroar rei de Portugal.
Seguiram-se as outras duas invasões, até aos finais de 1811, respectivamente comandadas por Soult e Massena. Portugal, ajudado pelo auxílio militar inglês, iria conseguir esconjurar a tentativa de ocupação francesa. Mas a sua vitória era comparável à de Pirro: expulsos os inimigos franceses, pelas leis da guerra, ficavam entre nós os aliados da paz, os ingleses, igualmente vorazes e implacáveis. A família real tinha desertado e encontrara no Brasil um “modus vivendi” que parecia agradar-lhe, satisfazendo-lhe todos os hedonismos. Portugal ficara entregue a si mesmo, ou seja, aos medíocres “senhores do Rossio” que a família real avalizava a partir do Brasil e, sobretudo, ao poderoso William Carr Beresford, ao qual o Príncipe – e depois rei D. João VI – cumulava de benesses e outorgava toda a sua confiança. Operava-se uma completa inversão de hierarquias territoriais. Quase se poderia dizer que Portugal era agora a colónia da antiga colónia do Brasil, para o qual se tinha deslocado o eixo da hegemonia e do comércio marítimo. Este facto convinha o mais possível ao mercantilismo inglês, que desde sempre desejara o franco e irrestrito contacto com as Terras de Vera Cruz, as quais se revelaram cerradas até ao momento da transferência do Corte portuguesa.
Sob a governação de Beresford, exercida em nome de D. João VI mas verdadeiramente favorável aos interesses britânicos, Portugal ia definhando a olhos vistos. A importância do porto de Lisboa declinara e os impostos aduaneiros entraram em profunda e irreversível recessão; as sangrias de dinheiro, pressionadas pelos pedidos insistentes da Corte no Brasil, eram constantes; o exército assistia às diferenças de soldo entre os militares portugueses e ingleses, sempre favoráveis a estes últimos; a vida cultural era uma inexistência. Numa palavra: o declínio era total.
O ano de 1817 revelou-se altamente nefasto. Beresford sentia a surda revolta da população portuguesa e procurava sustê-la com o exercício de um poder absoluto, exercido em nome do rei distante, o qual, no entanto, lhe cobria todos os excessos. As opiniões de cada um eram vigiadas de perto por uma rede de denunciantes, montada pelo próprio Beresford. Foi assim que chegou ao seu conhecimento que estaria em marcha uma conspiração contra o seu poder pessoal e favorável ao regresso da Casa Real ao país. Nesse suposto movimento estariam envolvidos alguns oficiais portugueses. Tais rumores careciam de confirmação, sobretudo na parte em que envolviam a figura de Gomes Freire de Andrade. Era este um distintíssimo Oficial de exército português, que tivera de servir compulsivamente nas fileiras das tropas napoleónicas e nelas se cobrira de prestígio. Mas não era a fama militar de Gomes Freire o único motivo que despertara as prevenções de Beresford; a razão mais impositiva radicava no facto de se saber que ele desempenhava o cargo de Grão-Mestre da Maçonaria portuguesa. Sendo o ideal maçónico eivado de valores liberais, tal chefia não poderia deixar de suscitar a má vontade ou até mesmo o ódio larvar de Willliam Carr Beresford. Isto explica que sem mais aprofundadas indagações tenha sido dada ordem de prisão a Gomes Freire e aos supostos implicados na conjura. Os simulacros de julgamento foram realizados à margem das mínimas garantias de imparcialidade ou de um desejo sincero colocado ao serviço do apuramento da verdade. Do que se tratava era de atemorizar os anseios libertadores da população e de sufocar todos os assomos da dignidade nacional. É isto que explica o bárbaro assassinato político de Gomes Freire de Andrade, enforcado em 18 de Outubro de 1817 junto ao forte de S. Julião da Barra, assim como o sacrifício infame de mais onze vítimas no Campo de Santana, através do mesmo processo que tinha roubado a vida ao distinto Oficial português.
Não foi alcançada, no entanto, a intenção de sufocar pelo medo os objectivos patrióticos. Assim, logo no ano seguinte se organizou no Porto um centro de análise e de reflexão da quase desesperada situação política portuguesa. O primeiro responsável pela criação desse centro, denominado Sinédrio, foi o jurista Manuel Fernandes Tomás. Foi ele quem congregou nessa organização um feixe de boas vontades, de que poderão destacar-se, entre outros, os nomes de José Ferreira Borges, José da Silva Carvalho e José Ferreira Viana. O Sinédrio foi fundado em 22 de Janeiro de 1818. Os seus elementos, inicialmente em número de treze, entenderam dever reunir-se nos dias 22 de cada mês, num jantar que decorreria no Porto – mais precisamente em S. João da Foz. Todos se obrigavam a guardar sigilo para com terceiros do que lá fosse conversado. A intenção inicial consistiu na reflexão sobre a desvalida situação política e social do país, atentando igualmente no que se fosse passando na vizinha Espanha. A maior preocupação era a de encaminhar no melhor sentido as manifestações patrióticas de teor anárquico ou desarticulado, obstando a que a omnipotência de Beresford pudesse provocar novas vítimas. O Sinédrio entendeu igualmente não permanecer passivo no caso de eclodir um movimento revolucionário, avocando a função de encaminhar com realismo e sensatez um possível caudal reivindicativo, sem jamais pôr em causa a dinastia de Bragança.
As periódicas análises do Sinédrio foram-se fazendo no sentido de uma cada vez maior clarificação. Tornava-se evidente que Portugal nunca poderia recuperar o seu estatuto de potência marítima e colonial se a família real continuasse no Brasil, uma vez que eram os portos brasileiros a acolherem agora os navios mercantes que anteriormente carregavam e descarregavam em Lisboa. Era, de resto, uma alternativa de há muito desejada pela Inglaterra. Os homens do Sinédrio também reconheceram que nunca seriam repostas as condições de normalidade nas fileiras do exército se persistisse nele a presença de efectivos ingleses. É que, como foi dito, os soldos pagos a estes eram significativamente mais altos do que os que eram pagos a militares portugueses, constituindo isto um permanente motivo de reclamação e de mal-estar. Finalmente, era óbvio que sendo Beresford a personalidade dominante na condução dos destinos pátrios, jamais estes convergiriam com as mais prementes necessidades e anseios da Nação. Por isso, o programa mínimo que se foi lentamente definindo no Sinédrio exprimia-se pelo retorno da família real ao país e pela expulsão de Beresford e das tropas inglesas do nosso território. É de crer que tenha sido Manuel Fernandes Tomás o principal responsável pela conversão deste programa mínimo num outro projecto mais ambicioso : o de uma revolução constitucionalista. A reivindicação de um diploma constitucional comportava o significado de uma verdadeira mutação quanto à natureza político-social das coisas. No caso do constitucionalismo vingar, isso teria o significado de uma mudança irreversível na vivência colectiva: a monarquia absoluta, de essência tradicionalista e de substância aristocrática, cederia o passo a uma monarquia constitucional, de essência contratualista e de substância burguesa.
Quer a transformação viesse a fazer-se nos termos do programa mínimo ou do programa máximo, uma coisa era dada por assente: ela teria de realizar-se através de uma revolução. Sendo o Sinédrio fundamentalmente composto por juristas, foi necessário alargar-lhe o número de efectivos e integrar nele uma ala militar, à qual vieram a pertencer personalidades como as do Brigadeiro António da Silveira Pinto da Fonseca, Coronel Bernardo Sepúlveda e Coronel Sebastião Drago de Brito Cabreira. A partir de então, geraram-se assinaláveis tensões no interior do Sinédrio. A ala dos juristas, encabeçada por Manuel Fernandes Tomás, procurou fazer vingar a tese da necessidade de uma revolução constitucionalista; por seu turno, a ala dos militares não aspirava a mais do que à expulsão de Beresford e das tropas inglesas e ao regresso a Lisboa da Corte que se encontrava no Rio de Janeiro. Ou seja: a parte civil pretendia encaminhar-se para uma ruptura controlada, enquanto a parte militar não revelava vontade em vibrar no tradicionalismo um golpe de morte.
Neste contexto, foi decisivo o realismo e o pragmatismo de Manuel Fernandes Tomás. Entendeu ele que a questão do constitucionalismo deveria ser adiada para as Cortes e que a prioridade era preparar tudo para que a revolução acontecesse. O seu modo de ver revelou-se acertado. Em 24 de Agosto de 1820, a revolução manifestava-se no Campo de Santo Ovídio e nas ruas do Porto. Com ela chegaria a Constituição de 1822 – e através desta irromperia a contemporaneidade na vida colectiva. A soberania nacional, a cidadania, o germe da igualdade perante a lei, a submissão de todos os poderes a um quadro legal uniforme e a independência do acto de julgar foram proclamadas, entre nós, pela primeira vez.
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