Juan Carlos foi expatriado

Tudo o que se passa em Espanha tem reflexos em Portugal, e vice- versa, da economia à política, da saúde pública à das empresas, das instituições às ideias, depois de afastados os países, no campo cultural, quando a repressão fascista era comum e a cultura chegava no Sud Expresso da CP, dissimulada na bagagem, a fugir à vigilância da Pide.

Foi assim que a queda da ditadura em Portugal apressou a democratização de Espanha, onde o genocida Francisco Franco ainda se manteve o tempo suficiente para morrer na cama, impune, bem sacramentado, sucedido pelo regime que impôs e o ator que designou, educado nas madraças da Falange e na ética franquista.

A deportação do rei emérito Juan Carlos, sem honra nem glória, nem esposa legítima, é um rude golpe na instituição monárquica de alto valor simbólico – a Casa Real –, que, sem o criador da dinastia e sem uma das filhas, afastada com o marido, depois da prisão deste, transforma a Casa Real em albergue de geometria mprevisível.

A monarquia foi metida à sorrelfa na Constituição pelo artífice da transição pacífica da ditadura, Adolfo Suarez, com as sondagens a indicarem a preferência pela República, contra a vontade expressa pelo sádico genocida Francisco Franco. É uma herança franquista a anomalia que perdurou pelo medo de reavivar chagas e despertar demónios adormecidos, mas a presente dinastia arrisca-se a ficar reduzida a dois reinados.

Juan Carlos tinha um passado deplorável de servilismo e admiração a Franco. Libertou-o o boato, posto a circular logo após o fracasso do golpe fascista do 23-F, de que se lhe devia a sua contenção, quando estavam implicados os importantes generais, ten. general Jaime Milans del Bosch e o general Alfonso Armada, da confiança do rei.

O golpe fracassou graças à coragem do ministro da Defesa, gen. Gutiérrez Mellado, que se ergueu e enfrentou o grotesco ten. coronel Tejero Molina, repreendeu os militares e ordenou a deposição das armas, tendo o reincidente golpista reafirmado a ordem, com o disparo seguido por rajadas das carabinas dos 200 assaltantes.

Os deputados estavam a votar Calvo-Sotelo para presidente do Governo de Espanha e o golpe visava substituir a monarquia constitucional pelo absolutismo real.

O tosco ten. coronel de tricórnio acabou por se render na impossibilidade de derrubar o heroico general Gutiérrez que não se intimidou com os tiros, apenas acompanhado pelo ainda presidente Adolfo Suárez e pelo deputado comunista Santiago Carrillo, que permaneceu sentado, os únicos que desobedeceram à ordem de se deitarem. Foi ali que o golpe fracassou e não é crível que o rei fosse alheio ao golpe onde estavam implicados generais da sua confiança, mas foi encenada a coreografia que o metamorfoseou em democrata, quando o medo e a memória de uma guerra civil estavam ainda vivos.

O rei, fardado de capitão-general, surgiu a condenar o golpe, e o general Armada a pedir a Tejero que se rendesse. O franquista Alfonso Armada, percetor do rei, envolvido na tentativa de golpe de Estado de 23 de fevereiro de 1981 (23-F) foi demitido, condenado a 30 anos de prisão, e perdoado pelo Governo em 1988, por alegadas razões de saúde. O ‘doente’ viveu ainda mais 25 anos, facto habitualmente omitido.

A voracidade sexual do predador Juan Carlos está no ADN da família Bourbon e é um atributo histórico que teve na rainha portuguesa, Carlota Joaquina, a mais desvairada e promíscua manifestação.

Foi a divulgação pública dessas atividades que o desacreditaram de novo, mas foram os negócios sujos, as contas dissimuladas em paraísos fiscais, as comissões do petróleo, subornos e prodigalidades às parceiras sexuais que derrubaram o caçador, caçado por investigações de corrupção e denúncias das suas presas, e tornaram insustentável a sua presença na Casa Real que criou e no próprio país onde reinou.

A Espanha está habituada a ver partir os Bourbon. Este pode ser o penúltimo.

Ponte Europa / Sorumbático

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