Moçambique – Os portugueses não são racistas (Crónica – 4600 carateres)

Durante 26 meses e 5 dias estive afastado da Pátria, integrado nas forças de ocupação de Moçambique, na guerra colonial.

As vicissitudes por que passei antes do embarque, a ansiedade sofrida e a que criei nos meus pais, levaram-me a renunciar às férias em Portugal, enquanto não fosse transferido da zona de guerra para uma zona de paz, o que nunca sucedeu porque se ia dilatando a primeira na proporção em que minguava a segunda.

Passei as férias de 1968 e 1969 em Nampula, na excelente pensão de uma conterrânea, de Figueira de Castelo Rodrigo, com idas frequentes à paradisíaca Ilha de Moçambique, hoje património da Humanidade. Convivi com a comunidade civil portuguesa e conheci uma prima direita de meu pai, nascida em Espanha, casada com um português, ambos funcionários dos Correios. Nos dois meses que por ali andei, nunca vi um casal misto ou um criado caucasiano.

Ninguém me acreditava quando dizia que a guerra estava perdida, era questão de tempo, sobretudo em 1969, quando a guerrilha alastrou ao distrito de Tete. Só a dona da pensão adivinhava o futuro, a murmurar: – ainda hei de ver pretos a mandar nos meus filhos.

Não viu, encontrei-a no seu minimercado, em Figueira de Castelo Rodrigo, em 1975 e anos seguintes, e o desabafo, em Nampula, era mera inquietação com a cor da pele.

***

Um dia, em Nova Guarda, entre Catur e Vila Cabral, jantei, como sucedeu muitas vezes, com dois capatazes dos Caminhos de Ferro (CFM), o Martins e o Santos, e o enfermeiro Samuel, dos CFM. Esperava-me uma deliciosa refeição de caça. O Santos ordenou ao Samuel para me dar a sua cadeira e arranjar onde se sentar, o que, perante o meu pasmo, foi rápido. O Samuel tirara o curso de enfermagem, após o 7.º ano liceal, e era um bom profissional. Ignoro se ganhava menos do que os capatazes, e tinha preparação cultural bem superior. A ordem só podia dever-se à hierarquia estabelecida pelo tom da pele.

***
   
Em 1969, Luís Canejo Vilela, comandante do Bcaç. 1936 foi promovido a coronel. Era um honrado democrata que decidiu mostrar-me o ofício da Pide em que lhe pedia para me vigiar, dizendo para não me preocupar. Beneficiei da sua estima e mantivemos uma excelente relação em Lisboa, quando passou à reserva, nos anos que vivi na capital.

Substituiu-o o medíocre ten. cor. José Afonso. Chegado há pouco ao Batalhão, recebeu um pedido para me dispensar e autorizar a dar aulas de português, duas semanas, num curso de aperfeiçoamento de professores autóctones, numa missão católica próxima de Nova Freixo. Os professores tinham rudimentar preparação, muito inferior à modesta formação das Escolas do Magistério Primário portuguesas.

O pedido, oriundo do bispo Eurico Dias Nogueira, deixou-o feliz e foi com satisfação que comunicou a minha disponibilidade, depois de eu anuir ao convite que esperava.
O inspetor do Ensino Primário de Vila Cabral, o Flávio Marques, era um amigo, colega de curso, na Guarda. Faltavam professores, e nomeava-me para os júris de exames, em unidades militares do Niassa. A lei exigia um professor diplomado e os soldados tinham de fazer a 4.ª classe para reduzir estatisticamente o analfabetismo nacional. Ia buscar-me o helicóptero militar. De fato e gravata, voava feliz, livre do camuflado.

Dessa vez viajei de comboio até Nova Freixo em cuja estação me esperava um jipe com um padre e um colega, o Nogueira, irmão do bispo. A Missão ficava a menos de 20 km. Foi rápida a viagem, suportáveis os solavancos, e aguardava-me um excelente jantar.

Ao segundo ou terceiro dia reparei que, durante as refeições, continuavam duas cadeiras vazias a separar-me de um seminarista que estava de férias na missão e com quem tinha agradáveis conversas. Perguntei-lhe por que motivo não se sentava a meu lado e notei o seu constrangimento e li no rosto que, depois da refeição, me explicaria.

Era aluno do 3.º ano do seminário, onde entrara com o 7.º ano dos liceus, imprescindível à admissão. Partilhar a mesa era o máximo que a cor da pele permitia até ser padre.

Disse-me que o sacerdócio era a única profissão que dava acesso à consideração social de um negro, embora não previsse uma mulher branca a confessar-se a ele. Fiquei com a ideia de que acreditava mais na Frelimo do que em Deus. Perguntou-me se tinha visto algum padre negro em Vila Cabral ou numa das missões do Niassa, embora já houvesse padres negros em Moçambique. Ficámos amigos e trocámos endereços. Não mais soube dele e guardei afetuosamente a recordação de ter confiado em mim.

Do corpo docente desse curso só reencontrei o Nogueira. Na minha errância pelo País, vi-o logo que cheguei a Coimbra, em 1973. Era professor na escola dos Olivais e conversámos com alguma frequência até à sua aposentação. Lamentava o 25 de Abril, primeiro, e vociferava contra a coeducação, depois, quando, 1984, a escola masculina dos Olivais passou a admitir crianças de ambos os sexos.

“Ó colega, acha bem? Antigamente havia respeito. Lembra-se do respeito que havia em Moçambique? Agora é uma desgraça. Quiseram entregar Moçambique à Rússia porque sabiam que os pretos não se sabem governar. O Spínola fez-nos muita falta.”

Penso que não ouvia a minha argumentação, embora, às vezes dissesse desoladamente, o colega não é o único que vê as coisas erradamente. Quando esperava os meus filhos e ele saía primeiro, já sabia que tinha de lhe ouvir diatribes contra a democracia. Ele nem era contra a democracia, era contra a que tínhamos.

É a vida! Racismo não há, e nunca houve. Pelo menos, em Moçambique.
 
Coimbra, 8 de agosto de 2020

Comentários

Jaime Santos disse…
As pessoas nem se apercebem que não se ser racista, ou sexista, ou homofóbico implica defender para os outros os mesmos direitos que exigimos para nós. E não de modo meramente formal, mas sim na prática. As leis portuguesas não são obviamente racistas (muito embora o Chega, o Partido que diz que em Portugal não há racismo, as queira mudar), mas a sua existência não obvia o racismo que ainda medra em Portugal...

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