O garoto rural e a cidade (minicrónica)
Até aos 10 anos, com memória desde os 4, não me recordo de casas de banho. Conhecia a retrete de madeira, com buraco para a corte dos animais ou para a pocilga. Julgava que a retrete em louça, ignorava o termo sanita, fosse exclusiva dos comboios e estações da CP.
Havia naturalmente grandes banheiras de zinco, em casas de gente rica, que, depois dos banhos, eram encostadas à parede até novas abluções com água aquecida em caldeiros suspensos sobre a lareira. Era assim no Cume, a 10 km da Guarda, onde a minha mãe dava aulas, e na Miuzela do Coa, onde os avós maternos me mimavam nas férias.
Nessas aldeias não havia água canalizada, saneamento, eletricidade ou telefone; na Miuzela, nem água potável. Para beber, ia-se buscá-la à horta do Vale e à do Espadanal, em cântaros de lata, nas cangalhas da burra.
Quando entrei no liceu, tinha o pai em Bragança à espera de uma vaga na categoria que o tinha desterrado. Em outubro fiquei numa casa sem saneamento, de gente amiga, logo a seguir ao Bonfim, a caminho do matadouro municipal.
Quando o meu pai chegou, antes de arrendar casa, hospedámo-nos durante alguns meses na pensão Madeira, da D. Bernardina, numa transversal à R.do Comércio. Tive um trato especial, com lanche, e um copo de leite e pãezinhos com manteiga, antes de me deitar.
No primeiro dia, fui do quarto que partilhava com o meu pai à casa de banho. Admirei a banheira, bacia, bidé e sanita, tudo louça fixa que dava serventia a vários quartos. A curiosidade fixou-me na corrente metálica suspensa, a terminar num pedaço de louça de forma cilíndrica. Ocorreu-me puxá-la e assustei-me com o barulho da descarga de água na sanita, imparável, a sugerir o Dilúvio Universal da imagem do catecismo. Aos gritos, paizinho, paizinho, a recear o perigo e o castigo, surgiu o meu pai a sorrir, antes de me dar conta de que, o que julguei ser uma tragédia, era apenas a descarga do autoclismo.
Aprendi uma nova palavra e a funcionalidade do mecanismo. Afinal, aquele ruído não anunciava o fim do mundo que temi desencadear.
No quarto, nas mesinhas de cabeceira, mantinham-se os usuais penicos para as pressas, e na eventual ocupação da casa de banho por outros hóspedes.
Nas repartições públicas, havia os escarradores de porcelana para higiene brônquica dos funcionários, e ruidosos atos de pontaria que produziam repugnantes estalactites em direção ao prato que servia de suporte ao pé alto que os colocava a meio metro do chão.
Era a Guarda, em meados do século que, há duas décadas, se extinguiu.
Coimbra, 26 de agosto de 2020
Havia naturalmente grandes banheiras de zinco, em casas de gente rica, que, depois dos banhos, eram encostadas à parede até novas abluções com água aquecida em caldeiros suspensos sobre a lareira. Era assim no Cume, a 10 km da Guarda, onde a minha mãe dava aulas, e na Miuzela do Coa, onde os avós maternos me mimavam nas férias.
Nessas aldeias não havia água canalizada, saneamento, eletricidade ou telefone; na Miuzela, nem água potável. Para beber, ia-se buscá-la à horta do Vale e à do Espadanal, em cântaros de lata, nas cangalhas da burra.
Quando entrei no liceu, tinha o pai em Bragança à espera de uma vaga na categoria que o tinha desterrado. Em outubro fiquei numa casa sem saneamento, de gente amiga, logo a seguir ao Bonfim, a caminho do matadouro municipal.
Quando o meu pai chegou, antes de arrendar casa, hospedámo-nos durante alguns meses na pensão Madeira, da D. Bernardina, numa transversal à R.do Comércio. Tive um trato especial, com lanche, e um copo de leite e pãezinhos com manteiga, antes de me deitar.
No primeiro dia, fui do quarto que partilhava com o meu pai à casa de banho. Admirei a banheira, bacia, bidé e sanita, tudo louça fixa que dava serventia a vários quartos. A curiosidade fixou-me na corrente metálica suspensa, a terminar num pedaço de louça de forma cilíndrica. Ocorreu-me puxá-la e assustei-me com o barulho da descarga de água na sanita, imparável, a sugerir o Dilúvio Universal da imagem do catecismo. Aos gritos, paizinho, paizinho, a recear o perigo e o castigo, surgiu o meu pai a sorrir, antes de me dar conta de que, o que julguei ser uma tragédia, era apenas a descarga do autoclismo.
Aprendi uma nova palavra e a funcionalidade do mecanismo. Afinal, aquele ruído não anunciava o fim do mundo que temi desencadear.
No quarto, nas mesinhas de cabeceira, mantinham-se os usuais penicos para as pressas, e na eventual ocupação da casa de banho por outros hóspedes.
Nas repartições públicas, havia os escarradores de porcelana para higiene brônquica dos funcionários, e ruidosos atos de pontaria que produziam repugnantes estalactites em direção ao prato que servia de suporte ao pé alto que os colocava a meio metro do chão.
Era a Guarda, em meados do século que, há duas décadas, se extinguiu.
Coimbra, 26 de agosto de 2020
Ponte Europa / Sorumbático
Comentários
Só pode ser saudosista do Passado quem não o viveu, ou então quem o viveu e vivia rodeado de privilégios...