O chumbo do OE-2022 – Até aqui cheguei…

Hesitei entre o título «J’accuse…», do artigo de Émile Zola na sequência do caso Dreyfus e o desabafo de José Saramago perante a prisão política de mais um intelectual por um regime que defendia. Optei pelo segundo, mais de acordo com a revolta sentida com o chumbo do OE-2022, no rescaldo da maior crise económica, financeira, social e sanitária de um século, e cujo desfecho é ainda imprevisível.

Não me senti desiludido. A desilusão é o argumento romântico que os trânsfugas usam para justificar uma deserção. Eu não desertei nem mudei de campo. Sinto revolta pelo desfecho da votação e uma enorme solidariedade por António Costa, que arrostou com o azedume e a chantagem de Cavaco Silva para provar que a direita não tem o alvará para decidir a dimensão do Arco do Poder, tal como nenhum partido de Esquerda o tem para rotular quem é ou não de esquerda e, muito menos, quem é democrata.

A decisão feriu interesses dos mais necessitados, do país, dos autarcas, e o bom senso. Um orçamento que podia ainda ser melhorado em fase da especialidade, mesmo pelos que julgam que todos os limites são possíveis, do endividamento ao défice, da utopia ao aventureirismo, podiam ainda obter ganhos. Preferiram chumbar, sem apelo, o OE.

António Costa, desde o princípio balizou como linhas vermelhas a fidelidade à União Europeia e à Nato, objetivos que cumpriu, e levou longe os entendimentos à esquerda, cuja preferência não escondeu. Ninguém o pode acusar de incoerência ou deslealdade.

Ontem, pareceu-me ver a doença infantil do comunismo e o aventureirismo trotskista de mãos dadas contra os interesses do País, dos mais pobres, dos autarcas e do futuro dos partidos à esquerda do PS na construção de soluções onde fazem falta. Lenine segredou o seu sarcasmo à revolução permanente trotskista, “tagarelice permanente”.

António Costa resgatou para as soluções do País os partidos ostracizados, levou para o Conselho de Estado representantes seus, deu-lhes primazia nas negociações orçamentais e, enquanto o BE fez do PS o inimigo principal, o PCP acabou por se lhe associar nesta insensatez da Esquerda portuguesa. Não houve autocrítica à erosão das autárquicas, que debilitou todos os partidos de Esquerda.

Nunca a direita recebeu tão chorudo e entusiástico prémio como o que lhe foi oferecido pelo chumbo do Orçamento mais à esquerda que já foi apresentado, no limite do que as incertezas políticas, sanitárias, energéticas, económicas e financeiras permitiam.

Da Madeira, um sátrapa videirinho e sem esqueleto ainda ofereceu os votos dos lacaios, como se um deputado da República tivesse a consciência hipotecada ao líder regional e a traição ao partido fosse um negócio.

Vai ser difícil lamber as feridas, suportar as acusações mútuas dos partidos de esquerda, combater o anticomunismo primário, erguer um dique à extrema-direita, enfim, restituir ao país a confiança na solidariedade entre as esquerdas, e recuperar o que estava aceite.

No meu ponto de vista, ontem, o BE, PCP e PEV entregaram o ouro ao bandido, sem se interrogarem do que seria Portugal fora da U. E., sem vacinas, crédito e solidariedade.

Comentários

Jaime Santos disse…
O chumbo do OE foi, isso sim, um episódio de pura irracionalidade política na defesa de princípios respeitáveis e que revelou uma profunda falta de inteligência política, leia-se de manha, por parte dos Partidos de Esquerda.

Como já escrevi noutros sítios, as motivações de recusa do OE por parte de BE e PCP-PEV são diametralmente opostas às da Direita. Só que concorreram com ela para a mesma consequência, mergulhando o País numa crise política, a juntar às crises sanitária, econômica e social, de que manifestamente não precisamos.

E essa consequência favorece a Direita, que obtém tudo o queria e prejudica a Esquerda, que não apenas não consegue o que desejava, como obtém ainda menos do que aquilo que era oferecido, ou seja, zero.

E o que era oferecido era o mínimo dos mínimos, como bem notou Costa num dos discursos mais acutilantes que já lhe ouvi, em que conseguiu inclusive gozar com a Direita, atingindo a Esquerda.

Sempre quero ver como é que os Partidos de Esquerda vão explicar aos seus potenciais eleitores por que razão a defesa dos ditos princípios justifica que lhes seja negado o aumento extraordinário de pensões, as creches gratuitas já a partir do próximo ano no primeiro ano, mais verbas para o SNS, alterações ao regime de reformas por invalidez, etc, etc, a somar à crise política.

A tentativa de BE e PCP-PEV de argumentar que o Governo deve simplesmente apresentar um novo Orçamento parece patética nesta altura, porque não vamos agora andar a brincar aos Orçamentos. O OE é um documento central na definição da política corrente dos Governos, que naturalmente governam com base no seu programa e não o programa dos outros Partidos. Uma coisa são alterações na especialidade que não alteram a natureza de um OE, outra é um novo documento.

E muito naturalmente esses Partidos sabiam que o PR já tinha esticado a corda (no que fez muito mal, porque pode ter inclusive extremado as posições das Esquerdas) e que o único cenário após o chumbo seria a dissolução e eleições antecipadas, até porque esse chumbo simbolizava o fim da Maioria que apoiava o Governo.

Naturalmente que dou alguma razão a quem diz que uma discussão permanente entre os parceiros na AR, à semelhança da legislatura passada, teria permitido apresentar um documento mais consoante com as aspirações das Esquerdas, mas lembro que foi o PCP que recusou um acordo de legislatura e assim sendo, Costa, talvez para sua própria vantagem, recusou o que lhe era oferecido pelo BE (por boas razões, digo eu, dado o carácter digamos, mercurial, do Partido de Catarina Martins).

A Esquerda estava à beira do abismo e resolveu dar um passo em frente...
Unknown disse…
E, ENTÃO, OS TRABALHADORES E O POVO?
(algumas perguntas de um leigo)

Há um ano atrás, insurgi-me contra o facto de o BE votar, na generalidade (!), contra o Orçamento Geral do Estado para 2021. Agora, também o PCP seguiu o mesmo caminho em relação ao OGE para 2022, argumentando que o Governo/PS não foi ao encontro das suas propostas nas respetivas negociações!
Negociar, seja o que for, implica cedências de parte a parte. E, se é verdade que o PS não pode agir como se tivesse a maioria absoluta, também as esquerdas não se podem colocar na posição como se tivessem o mesmo peso eleitoral do PS! A título de exemplo, ninguém compreenderia que o CDS, numa eventual negociação com o PSD para formação de listas conjuntas, reivindicasse tantos lugares elegíveis como o PSD!
Dito de outra forma, as esquerdas não podem exigir ao Governo/PS, embora minoritário em relação ao país mas cinco vezes maior que elas, que governe em função de um programa que não é o seu!
Essas esquerdas ficam muito mal nesta fotografia do Orçamento, ao votarem contra e logo na generalidade, sem sequer esperarem por eventuais mais melhorias na discussão na especialidade! Para além do mais, como se compreende que essas esquerdas votem, numa matéria fundamental para o país, ao lado dos partidos da troyka e do Chega?
Será que as eleições antecipadas vão resolver alguma coisa? Será que o PS não as poderá ganhar de novo, mesmo sem maioria absoluta? Será que a direita, ganhando sem maioria, terá condições de governar? E, mesmo ganhando com maioria, será que um Orçamento por si apresentado será melhor que este agora chumbado?
Em Setembro, uma certa esquerda lutou para que Fernando Medina não tivesse maioria absoluta em Lisboa e conseguiu! Agora, tudo fez para retirar a maioria relativa ao PS no país! Para a dar a quem? É caso para se dizer: estas esquerdas vão de vitória em vitória… até à derrota final!...
joão pedro disse…


Caro Carlos,

Aprecio em geral os seus posts e frequentemente os visito, sendo que não temos visões do mundo coincidentes, sendo que daí não vem mal algum àquele...Neste post impressionou-me, negativamente, a alusão a um desabafo de José Saramago. Pergunto se na sua independência intelectual - que não me atrevo a questionar - alguma vez escreveu neste espaço algo em defesa de Assange, Snowden, Chelsea Benning, ou outros de iguais "contornos"...

Aguardo, com consideração, as suas notícias.

João Pedro

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