À Libânia (meretriz e filantropa) – Crónica --- Homenagem de três gerações de estudantes....
Libânia (Libaninha). Não precisava de apelidos para ser referenciada. Continuam desnecessários para ser recordada.
No seu peito nunca brilhou uma comenda, e a ele se aconchegaram muitas inseguranças em véspera de exames, muitas ansiedades a preceder esponsais, muitas inquietações à procura do primeiro emprego.
O corpo não teve a moldá-lo um escultor que o imortalizasse em bronze, mas teve milhares de corpos que, em êxtase, o ajudaram a modelar.
Três gerações de estudantes aprenderam nela a inutilidade do pecado solitário. Foi, por assim dizer, a primeira educadora sexual. Sem diploma.
Teve mais matrículas do que o mais inveterado dos cábulas. E não chumbou por faltas, não lhe minguou a competência, nem se furtou às chamadas.
Não sendo culta foi uma mulher sábia. Não pertencendo a instituições de beneficência foi solidária. Foi tolerante, generosa e boa.
Pela sua casa passaram quase todas as profissões da cidade em busca dos préstimos da sua. Nivelou no tálamo as diferenças sociais que uma cidade beata e hipócrita fomentava.
Os estudantes foram a sua paixão. O seu consolo e a sua ruína. E a memória honesta que a recorda.
Mudou-se para Lisboa quando lhe fecharam a casa. Ali encontrou muitos dos seus estudantes queridos. Alguns haviam de virar-lhe as costas, senhores que a posição estragou, crápulas que o poder corrompeu. Mas a maior parte permaneceu fiel. Sem falsos pudores, sem atos de contrição, sem penitências.
Homenagear a Libânia, hoje, é um ato de humor e de amor. E um gesto de cultura. Trata-se de um manifesto contra a hipocrisia, duma vingança póstuma em defesa de quem foi vítima das aparências, dum libelo contra os guardiões da moral importada duma qualquer vulgata sem que, a nível pessoal, com ela se importem.
A Libânia era o desprendimento em pessoa. Parecia desprezar o óbolo que os mais endinheirados lhe deixavam, tanto quanto a remuneração do trabalho que efetuava.
Reagindo contra uma cultura que persegue o sucesso e o individualismo, contra uma postura que incensa o poder e o dinheiro, contra uma tradição que exalta a castidade e a abstinência, prestamos à Libânia a homenagem de quem a recorda com saudade e se não envergonha dos afetos que perduraram e percorrem as nossas vidas.
A vida de puta foi o ónus que a puta da vida a obrigou a pagar. A generosidade, a simpatia e a bondade foram as excelsas virtudes que a exornaram e a tornaram credora da homenagem que agora aqui lhe tributamos.
Com este ato ficamos mais aliviados de uma dívida que durante a vida nos perseguiu. E exorcizamos os demónios da hipocrisia.
Tibi gratias, Libânia!
Coimbra, Restaurante Neptuno, 26-05-2000 – (Jantar de antigos estudantes da Guarda)
Publicado: «Pedras Soltas», pág. 191 e «Guarda Formosa na
Primeira Metade do Século XX», pág. 403
Ponte Europa / Sorumbático
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