Incêndios da Madeira

Perante a ocultação da tragédia da Madeira nos media nacionais, sinto obrigação de deixar aos leitores uma carta de Violante Saramago, filha de José Saramago, que escreveu ao PR e merece ser divulgada.

Retirei-a da sua página do Facebook, juntamente com a foto, onde não vi a opção de partilha. Aqui fica:

Violante Matos

22 horas

CARTA PÚBLICA AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Não lhe vou tomar muito tempo e escrevo esta carta pública porque estou zangada.

Hoje, 26 de Agosto, houve um sismo frente a Setúbal e, pela prontidão com que o senhor Presidente da República se pronunciou, pude perceber que está vivo e de boa saúde. Coisa de que já duvidava, dado o silêncio com que V. Exa. enfrentou os dias (começou a 14 de Agosto e hoje, 26, há mais um reacendimento desta vez no Pico Ruivo) em que um incêndio queimou uma extensão de mais de 5 000 hectares, cerca de 7%, do território da ilha da Madeira, parte significativa em zona de Parque Natural e, mesmo, de Laurissilva.

Agora, permita-me V. Exa. dizer-lhe, que já não vale a pena falar, nem vir cá. É já tarde e terá, certamente, muita coisa para fazer. Aliás, sabe-se, que o senhor Representante da República tem estado – nas palavras do próprio – desde sempre em contacto consigo e seguramente já o informou da visita de inspecção que fez hoje e em que concluiu que não há nada a apontar ao combate ao incêndio cujo resultado final foi ‘ótimo’! Um ótimo branqueamento, atrevo-me a dizer!

Apesar da opinião crítica de gente conhecedora (especialistas, investigadores, bombeiros, técnicos, também de cá, como o ex-director regional das florestas) sobre a falta de ataque, em força, na fase inicial na Serra de Água (bem preocupantes são as declarações da presidente da Junta da Serra de Água de que não havia água nas bocas de incêndio!!) ; apesar da permanente recusa regional em pedir apoio porque tudo o que aqui existe, sabedoria incluída, é o melhor do mundo; apesar de dispensar a ajuda disponibilizada pelo governo da República; apesar da sucessão de trapalhadas, e não foram comunicacionais foram de fundo, sobre tudo e mais alguma coisa – do dispensa-se ao já aí vem, dos meios aéreos aos terrestres, do ‘olhómetro’ à tecnologia – porque a falsidade e o nevoeiro foram a regra de ouro das palavras dos responsáveis regionais; apesar de tudo, ao fim de 12 dias de incêndio, o resultado é, apenas, uma questão de semântica: ou o sucesso do Presidente do Governo ou o ótimo do Representante da República!

Apesar, e soube-se ainda por cima e para culminar, de o governo regional ter recusado em 2020 integrar o Plano Nacional de gestão integrada de fogos rurais, da AGIF – com o argumento de que a autonomia não pode ser posta em causa (!?), o que nos remete para uma outra tragédia, com os mesmos responsáveis: os fogos de 2023 na Calheta e no Porto Moniz poderiam ter sido bem menos devastadores… Mas, afinal, a questão é só escolher entre sucesso e ótimo!

Apesar do profundo desrespeito que o presidente do governo da Madeira e o secretário com a responsabilidade da Protecção Civil manifestaram pelos sentimentos de quem sofria, de como se portaram quanto às respectivas férias – mas, que diabo, que falta fazia Albuquerque na Madeira, para não poder voltar à espreguiçadeira no Porto Santo? ou, bem vistas as coisas, quem é que tem o direito de interferir na vida privada do secretário? Não acabou, digo eu, tudo num ótimo sucesso!?

Pode V. Exa. imaginar um certo tom irónico nesta carta, mas é só um disfarce da zanga que sinto. Que é, ainda assim, muitíssimo inferior à angústia, ao medo, à tristeza, ao choro, aos traumas, à incerteza, de todos quantos, nesta ilha, sofreram as chamas, sabem queimados os seus animais, viram destruídas as suas agriculturas de subsistência; para nem falar de todo um lugar – Fajã das Galinhas – que provavelmente terá de ser abandonado dada a instabilidade criada; são 120 pessoas que perderam casas e bens.

Para não falar das consequências nos ecossistemas, na consistência, recuperação e segurança dos solos. Para não falar da floresta e do ambiente.

Está tudo visto e dito.

Não precisa V. Exa. de se deslocar, gastar tempo, andar de avião, aumentar a pegada ecológica, pôr os sapatos em chão calcinado.

Não precisa de vir, também, ‘dar uma mãozinha’ ao governo regional. Guarde-se mais uns tempos. E, por favor, como é católico, reze, reze muito, para que nesta terra não caia uma tromba de água que faça de Fevereiro de 2010 uma brincadeira.

26.Agosto.2024

Violante Saramago Matos


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