Moçambique – Os portugueses não são racistas (Crónica – 4643 carateres)
Boa leitura, dilet@s
(Este foi um dos muitos textos que excluí do meu recente livro de crónicas, à venda nas livrarias).
Durante 26 meses e 5 dias estive afastado da Pátria,
integrado nas forças de ocupação de Moçambique, na guerra colonial.
As vicissitudes por que passei antes do embarque, a
ansiedade sofrida e a que criei nos meus pais, levaram-me a renunciar às férias
em Portugal, enquanto não fosse transferido da zona de guerra para uma zona de
paz, o que nunca sucedeu porque se ia dilatando a primeira na proporção em que
minguava a segunda.
Passei as férias de 1968 e 1969 em Nampula, na excelente
pensão de uma conterrânea, de Figueira de Castelo Rodrigo, com idas frequentes
à paradisíaca Ilha de Moçambique, hoje património da Humanidade. Convivi com a
comunidade civil portuguesa e conheci uma prima direita de meu pai, nascida em
Espanha, casada com um português, ambos funcionários dos Correios. Nos dois
meses que por ali andei, nunca vi um casal misto ou um criado caucasiano.
Ninguém me acreditava quando dizia perdida a guerra, era
questão de tempo, sobretudo em 1969, quando a guerrilha alastrou ao distrito de
Tete. Só a dona da pensão previa o futuro, a desabafar: – ainda hei de ver
pretos a mandar nos meus filhos.
Não viu, encontrei-a no seu minimercado, em Figueira de
Castelo Rodrigo, em 1975 e anos seguintes. O desabafo, em Nampula, era
inquietude com a subversão da hierarquia estabelecida pela cor da pele.
***
Um dia, em Nova Guarda, entre Catur e Vila Cabral, jantei,
como sucedeu várias vezes, com dois capatazes dos Caminhos de Ferro (CFM), o
Martins e o Santos, e o enfermeiro Samuel, dos CFM. Esperava-me uma deliciosa
refeição de caça. O Santos ordenou ao Samuel para me dar a sua cadeira e
arranjar onde se sentar, o que, perante o meu pasmo, foi rápido. O Samuel
tirara o curso de enfermagem, após o 7.º ano liceal, e era um bom profissional.
Ignoro se ganhava menos do que os capatazes, tinha preparação cultural bem
superior. A ordem só podia dever-se à hierarquia estabelecida pelo tom da pele.
***
Em 1969, Luís Canejo Vilela, comandante do Bcaç*. 1936 foi
promovido a coronel. Era um honrado democrata que decidiu mostrar-me o ofício
da Pide a pedir para me vigiar, dizendo para não me preocupar. Beneficiei da
sua estima e mantivemos uma excelente relação quando passou à reserva, nos anos
que vivi em Lisboa.
Substituiu-o o medíocre ten. cor. José Afonso. Chegado há
pouco ao Batalhão, recebeu um pedido para me dispensar e autorizar a dar aulas
de português, duas semanas, num curso de aperfeiçoamento de professores
autóctones na missão católica próxima de Nova Freixo. Os professores autóctones
tinham rudimentar preparação, muito inferior à formação das Escolas do
Magistério Primário portuguesas.
O pedido, oriundo do bispo Eurico Dias Nogueira, deixou-o
feliz e foi com satisfação que comunicou a minha disponibilidade, depois de eu
ter anuído ao convite esperado.
O inspetor do Ensino Primário de Vila Cabral, Flávio
Marques, era um amigo, colega de curso, na Guarda. Por falta de professores
civis nomeava-me para júris de exames, em unidades militares do Niassa. A lei
exigia um professor diplomado e os soldados tinham de fazer a 4.ª classe para
reduzir estatisticamente o analfabetismo nacional. Ia buscar-me o helicóptero
militar. De fato e gravata voava feliz, livre do camuflado.
Dessa vez viajei de comboio até Nova Freixo em cuja estação
me esperava um jipe com um padre e o colega Nogueira, irmão do bispo. A Missão
ficava a menos de 20 km. Foi rápida a viagem e suportáveis os solavancos.
Aguardava-me um bom jantar.
No segundo ou terceiro dia reparei que, durante as
refeições, continuavam duas cadeiras vazias a separar-me de um seminarista de
férias na missão e com quem tinha agradáveis conversas. Perguntei-lhe por que
motivo não estava sentado a meu lado. Notei o seu constrangimento e li no rosto
que, depois da refeição, me explicaria.
Era aluno do 3.º ano do seminário, onde entrara com o 7.º
ano dos liceus, imprescindível à admissão. Partilhar a mesa era o máximo que a
cor da pele permitia até ser padre.
Disse-me que o sacerdócio era a única profissão que dava
acesso à consideração social a um negro, embora não previsse confessar alguma
mulher branca. Perguntou-me se tinha visto algum padre negro em Vila Cabral ou
nas missões do Niassa, embora já houvesse padres negros em Moçambique. Ficámos
amigos e trocámos endereços. Não mais soube dele e guardei afetuosamente a
recordação de ter confiado em mim. Fiquei com a ideia de que acreditava mais na
Frelimo do que em Deus.
Do corpo docente desse curso só reencontrei o Nogueira. Na
minha errância pelo País, vi-o logo que cheguei a Coimbra, em 1973. Era
professor na escola dos Olivais e conversámos com alguma frequência até à sua
aposentação. Lamentava o 25 de Abril, primeiro, vociferava contra a coeducação
depois, quando 1984 a escola masculina dos Olivais passou a admitir crianças de
ambos os sexos.
“Ó colega, acha bem? Antigamente havia respeito. Lembra-se
do respeito que havia em Moçambique? Agora é uma desgraça. Quiseram entregar
Moçambique à Rússia porque sabiam que os pretos não se sabem governar. O
Spínola fez-nos muita falta.”
Penso que não ouvia a minha argumentação, embora às vezes
dissesse desoladamente, o colega não é o único que vê as coisas erradamente.
Quando aguardava os meus filhos, e ele saísse primeiro, sabia que tinha de lhe
ouvir diatribes contra a democracia. Ele nem era contra a democracia, era
contra a que tínhamos.
É a vida! Racismo não há, nunca houve. Muito menos em
Moçambique.
* Bcaç. = Batalhão de Caçadores.
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