Natal (Escrito em 2006)

Há meio século o Natal era pretexto para a reunião das famílias. Os ausentes voltavam todos os anos, à aldeia de origem, nas carruagens de 3.ª classe de comboios apinhados de pessoas e cabazes, com odores a que se resignavam as pituitárias de então.

Através do vidro partido, ou da janela avariada, o ar gélido entrava nas carruagens e nos corpos. Os passageiros partilhavam a vida e as merendas durante a penosa e longa viagem de pára-arranca. Os Senhores Passageiros precisavam de embarcar, ou de desembarcar, e a máquina a vapor de abastecer de lenha a fornalha e de água a caldeira.

Às vezes o comboio parava nas subidas para que a caldeira ganhasse pressão e pudesse rebocar o peso acrescido que deslocava. Entre Lisboa e a Guarda era normal um atraso de duas ou três horas, pela Beira Alta, e ainda mais pela Beira Baixa.

Nas estações e apeadeiros esperavam bestas e pessoas impacientes e enregeladas. À chegada do comboio havia abraços, ternos e demorados, e lágrimas de alegria. Do comboio acenavam mãos e ouviam-se votos de Feliz Natal quando o apito anunciava o retomar da marcha. Aos que se apeavam, só o caminho lamacento os separava, agora, da casa da aldeia onde aguardavam os parentes que ficaram em ansiosa espera. 

Quando eram pequenas as casas e numerosas as famílias, sobrava sempre lugar para os que chegavam. A ceia de Natal era o momento mágico que matava fomes ancestrais e a saudade das ausências.

Na lareira fumegavam panelas cheias cujos odores, fundidos com os que vinham da sala, traziam à memória os sabores da infância.

A candeia de azeite iluminava os trajetos domésticos enquanto o candeeiro a petróleo projetava as sombras dos familiares reunidos em conciliábulo.

Estranhava-se o milagre que permitira tantas postas de bacalhau, já que repolhos e batatas os dava a horta e os frutos eram secos no devido tempo. Rabanadas, arroz doce, sonhos, filhós e toda aquela variedade de guloseimas eram fruto dos ingredientes próprios e de segredos herdados a que o lume brando da lareira requintava o paladar.

Não deixava de ser estranho que tanto desse, quem pouco tinha, e negasse, avaro, quem muito podia. Eram esses os tempos, ainda são assim as pessoas.

Ceavam primeiro as crianças, por questão de espaço e de impaciência; passavam depois à sopa os mais velhos, antes de se fartarem no bacalhau, repolho e batatas, regados com azeite. Só depois de esgotado o vinho no garrafão e de se ver o fundo à panela se entrava nas sobremesas, nas aguardentes e na jeropiga.

As crianças impacientavam-se com a demora do menino Jesus que raramente trazia os presentes que pensavam, mas se conformariam com os que viessem. Os adultos sugeriam-lhes a cama enquanto os sapatos rodeavam a lareira à distância conveniente do lume que ainda crepitava. O sono ia-as vencendo, adormecendo primeiro as mais pequenas, que as mães e a avó iam depositando em camas improvisadas.

No pouco espaço disponível havia ainda lugar para o presépio, uma ingénua encenação do mito cristão que o pinheiro, oriundo de outras culturas, havia de substituir num prenúncio da globalização, para acabar feito de plástico, cheio de bolas coloridas.

De manhã, à medida que acordavam, os miúdos corriam para a chaminé, ansiosos por encontrar as prendas, e exultavam com os presentes.

O Menino Jesus, que então descia pelas chaminés, foi substituído pelo Pai Natal, a viajar de trenó, puxado por renas, em terras onde só a neve fazia jus à nova fábula que roubou o encanto dos musgos, da serradura, do algodão em rama e dos animais que rodeavam o menino de barro, deitado em berço de palha.

Nos sapatinhos, onde então cabiam os chocolates e os carrinhos de corda que faziam as delícias das crianças, o terço para a tia beata ou a onça de tabaco para o avô, não cabem hoje os jogos de computador, esperados sem ansiedade, nem os volumosos presentes embrulhados em papel reluzente.

Alguns pais ainda voltam aos sítios de origem para mostrar os netos aos avós, com o mesmo ar de enfado com que os levam ao Jardim Zoológico a ver a girafa e o elefante ou os metem nos Centros Comerciais. Mas o mais frequente é tirar os velhos da toca e pô-los a fazer o percurso inverso, com 50% de desconto no preço do bilhete, num exílio que começa na véspera da consoada e termina no início do Ano Novo, com a devolução ao habitat.

Mudaram-se os tempos. Do Natal que havia, resta a recordação das crianças que foram.

In Ponte Europa (2.ª edição) – à venda na Âncora Editora ou através das livrarias.


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