O Papo-Seco (Crónica) - 4417 carateres

Há, na vida dos países e na pacatez das pequenas povoações, figuras que são referências afetivas de uma época. O tempo encarrega-se de as esquecer como se não fosse rica a sua existência e estimulante o seu exemplo. 

Em meados do século passado havia em Almeida um sapateiro estimado por todos, um homem sempre disponível para fazer um favor, e capaz de usar os sapatos de um cliente antes de lhe deitar as meias solas, para os devolver quando calhasse, ou de descalçar os seus para alguém que deles precisasse.

Os garotos guardavam-lhe a sapataria à espera do arco que restaria dos pneus gastos, de onde retirava os pedaços de borracha que ainda havia para o calçado que remendava. Às vezes queria o martelo para espetar os protetores e brochas, que aumentavam a duração das solas, e tinha de o pedir ao garoto que brincava com ele. Cada arco que sobrava fazia feliz um garoto, que percorria a vila a correr atrás da gancheta que o fazia rodar. Muito gostavam os garotos do Papo-Seco que um dia se admirou por eu lhe chamar Sr. Papo-Seco, tão pouco habituado à senhoria do tratamento.

As cartas chegavam-lhe com a simples referência, Papo Seco – Almeida, com o pedido de uma certidão de idade, certificado do registo criminal ou qualquer outro documento de que o remetente carecesse, vindo no interior com uma nota de 20 escudos cujo troco era o pagamento do que faria de graça.

Nas festas largava a sapataria para ser fogueteiro. Todos o conheciam e estimavam, na vila e no concelho. Era uma companhia apreciada pela boa disposição e simpatia.

O Abel Nabais, comerciante de Nave de Haver, perguntou-lhe um dia se gostava de ir a Lisboa, olha se gostava, e convidou-o para o acompanhar numa viagem que, em breve, faria para tratar de negócios. Na noite anterior mal dormiu, com medo de que o amigo se esquecesse ou o fizesse esperar quando chegasse de automóvel.

Manhã cedo, no dia aprazado, partiram os dois para a viagem cuja distância e demora só ao Papo-Seco não cansavam. Percorreram mais de oitenta léguas, cruzaram numerosas localidades, e o sapateiro viu o que nunca julgou existir, havia mundo fora de Almeida e do seu termo, maravilhado e feliz.

Da conversa do caminho não reza a história. À entrada em Lisboa, com silêncios que o condutor esperava, os olhos do Papo-Seco luziam e surpreendia-se com a quantidade de veículos que circulavam na capital, no pós-guerra. A certa altura, com cada vez mais automóveis e camionetes a circularem, exclamou, ó Abel tivemos sorte, …, viemos em dia de mercado.

No regresso a casa e à sapataria, não se cansava de falar das maravilhas que vira em Lisboa e da felicidade de uma viagem inesquecível, grato ao seu amigo Abel. Voltou ao trabalho, aos favores a amigos e desconhecidos e ao convívio dos conterrâneos.

No início da década de sessenta, quando o país iniciou a fuga à miséria, rumo a França, recebia vários os pedidos para dar dormida a desconhecidos na sua modesta casa, na Rua do Poço. Por lá passaram muitos emigrantes, sem lhes perguntar para onde iam ou de onde vinham, até que a Pide o foi buscar.

Sentiu-se uma ave engaiolada antes de começar a ser torturado para confessar quem era o chefe da alegada rede de emigração clandestina, como se ele conhecesse os interesses que moviam os passadores ou quem eram. Foi a segunda e última vez que se encontrou em Lisboa, então para ser agredido e intimidado, com o corpo dorido, noites sem dormir e violência que não compreendia, por ter dado guarida sem saber a quem. 

Os esbirros que o levaram não pararam em Vilar Formoso, de cuja delegação provinham gritos que se ouviam nas imediações, receosos de que a sua popularidade levasse os fascistas locais a acudir ao homem bom, alheio à política, que ajudaria quem quer que fosse.

Muitos dias e noites depois, com nódoas no corpo e a sangrar por dentro, amargurado e sem compreender a vileza de que era vítima, mudo perante as ameaças, devolveram-no à procedência, sendo a generosidade o único crime que o comprometeu.

O Papo-Seco voltou a Almeida, mais sofrido e intrigado, sem perder aquele jeito de ser prestável, a reabrir a sapataria e a viver memórias amargas nos dias que ainda teve. 

Quando chegou o 25 de Abril, na sequência da deliberação de uma assembleia popular, uma Comissão Administrativa sucedeu ao autarca fascista e, durante cerca de 15 meses, dirigiu o município, sem qualquer remuneração, empenhada nos destinos do concelho.

Foi numa das reuniões dessa comissão administrativa que o elemento mais idoso propôs o nome do Papo-Seco para a rua onde morou e acolheu emigrantes clandestinos, proposta aceite por unanimidade. Lá foi descerrada a placa toponímica que a edilidade do CDS, saída das primeiras eleições autárquicas, logo removeu, irritada com a razão da homenagem explícita na placa, na antiga Rua do Poço a cujo nome regressou.

Afinal, o Papo-Seco tinha nome e apelido, António dos Santos, o nome de um homem bom que se vai apagando da memória à medida que são cada vez menos os vivos que o estimaram.

Os nomes dos membros da Comissão Administrativa, a ata da sua eleição e as atas das deliberações seguiram o destino da placa toponímica do Papo-Seco, de cujo paradeiro ninguém sabe:

Rua António dos Santos

(Papo-Seco)

Vítima da Pide

Só resta a memória, cada vez mais débil, de um tempo exaltante em que a democracia andou à solta.

In Ancoradouro, Pg. 79/81 – À venda nas livrarias




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