Página Um - Um artigo importante para a campanha presidencial
Assunção Cristas, antiga líder dos centristas, é
coordenadora do mestrado. Chefe do Estado-Maior da Armada nunca deu sequer uma
aula.
Nova School of Law: ala do CDS ‘entrega’ regência e
categoria universitária ilegal a Gouveia e Melo
por Pedro Almeida Vieira // Dezembro 6, 2024
Categoria: Exame
Temas: Sociedade, Política, Destaque
Portada
‘Dura lex, sed lex’ é uma das máximas jurídicas mais
relevantes. Mas a lei pode ser, na verdade, amaciada para os amigos. No início
de 2023, a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa – ou
pomposamente rebaptizada com o anglicismo Nova School of Law – anunciou a
contratação de Gouveia e Melo para a regência de uma cadeira do mestrado em
Direito e Economia do Mar, colocando-o com o estatuto de Professor Convidado.
Mas, apesar de se estar numa escola de ilustres juristas, fez-se tábua rasa das
normas do Estatuto da Carreia Docente Universitária, e nunca houve pareceres
para essa nomeação, que terá sido iniciada em 2022 e surge sob a égide de uma
parceria não revelada. Além disso, o ainda Chefe do Estado-Maior da Armada
nunca pôs os pés numa sala de aula, mandando subordinados leccionar a cadeira.
O incómodo interno fez com que, entretanto, Gouveia e Melo passasse a constar,
na lista do corpo docente, na secção das parcerias. Todo este processo foi
conduzido por Assunção Cristas, antiga ministra do Ambiente, que é coordenadora
do mestrado, e por Mariana França Gouveia, actual presidente do Conselho
Científico da faculdade. Nenhum dos intervenientes quis prestar
esclarecimentos, remetendo para gabinetes de comunicação breves depoimentos sem
focar aspectos fulcrais.
A Universidade Nova de Lisboa dispõe-se a construir
ilegalmente um currículo académico ao Almirante Gouveia e Melo conferindo-lhe a
regência de uma cadeira de mestrado e titulando-o de Professor Convidado. O
putativo candidato à Presidência da República nem sequer precisou no ano
lectivo passado de meter literalmente os pés nas instalações da Faculdade de
Direito desta universidade pública – agora denominada, para efeitos de mero
marketing institucional, de Nova School of Law –, porque todas as aulas foram ministradas
por oficiais não identificados da Marinha.
Neste processo, o Estatuto da Carreira Docente Universitária
foi sistematicamente violado e a validade da acreditação do próprio mestrado em
Direito e Economia do Mar, coordenado pela antiga ministra do Ambiente do CDS,
Assunção Cristas, arrisca a ser colocada em causa pela Agência de Avaliação e
Acreditação do Ensino Superior (A3ES) por incumprimento das normas legais.
Gouveia e Melo ostenta a regência de
uma cadeira de mestrado sem nunca ter posto os pés numa aula.
No auge da sua popularidade na liderança do Estado-Maior da
Armada, a Faculdade de Direito da UNL divulgou em Fevereiro do ano passado que
“uma das novidades deste ano [lectivo, de 2023/2024]” seria “a lecionação da
cadeira Maritime Security a cargo da Marinha Portuguesa, sob a regência do
Almirante Gouveia e Melo. E acrescentava ser “com enorme satisfação que
recebemos o ex-coordenador da Task Force do Plano de Vacinação contra a
covid-19 em Portugal, que se juntou à NOVA School of Law no seguimento do nosso
empenho em robustecer o nosso corpo docente com os/as melhores e mais
talentosos/as profissionais, contribuindo para a excelência deste Mestrado”.
O “nosso empenho”, o da Faculdade de Direito da UNL, deve
ler-se como empenho da ala do CDS nesta instituição universitária pública, que
desde há muito ‘namora’ com o Almirante Gouveia e Melo, como ficou patente no
descontraído encontro nocturno no bar Cockpit há duas semanas, revelado pelo
PÁGINA UM, com o líder centrista e ministro da Defesa, Nuno Melo. Com efeito,
todo o processo de convite foi conduzido pela então directora da Faculdade,
Mariana França Gouveia – que actualmente preside ao Conselho Científico – e
pela coordenadora do mestrado, Assunção Cristas, que também lidera a Comissão
Científica do mestrado. Além das suas ligações umbilicais ao CDS, estas duas
advogadas, amigas
de longa data, gravitam numa das mais importantes sociedades de advogados
com milionários
contratos públicos: a Vieira de Almeida.
Apesar do mais recente processo de acreditação pela A3ES ser
completamente omisso sobre a entrada de militares de carreira sem currículo
académico na regência de uma cadeira e a prestar aulas, não foi cumprida
qualquer das regras previstas no rigoroso Estatuto da Carreira Docente
Universitária, que não permite, por razões óbvias, a contratação de qualquer
pessoa mesmo sob convite e mesmo se tivesse um currículo académico invejável, o
que não é o caso de Gouveia e Melo.
Assunção Cristas, antiga líder do
CDS e ministra do Ambiente, é coordenadora do mestrado. Com a sua amiga de
longa data e ligada também aos centristas, Mariana França Gouveia, antiga
directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e actual
presidente do Conselho Científico, tratou de contratar Gouveia e Melo,
concedendo-lhe um título ilegal à luz do Estatuto da Carreira Docente
Universitária.
A colaboração de Gouveia e Melo no mestrado coordenado por
Assunção Cristas até terá começado antes de ser formalmente apresentado, como
se uma graduação universitária fosse algo caseira. Com efeito, em 19 de
Novembro de 2022, Assunção Cristas colocou na sua página do Facebook uma
fotografia com uma das filhas ao lado de Gouveia e Melo com a seguinte
mensagem: “Foi um gosto começar o dia na Base Naval do Alfeite com os alunos do
Mestrado em Direito e Economia do Mar da NOVA School of Law. Fomos
extraordinariamente bem recebidos pelo Almirante Gouveia e Melo e pela sua
equipa, responsáveis pela cadeira de Maritime Security”. Ora, nessa altura, nem
sequer havia qualquer anúncio de formalização da ligação entre a Marinha e a
Faculdade de Direito da UNL.
Saliente-se que para o recrutamento de professores, ainda
mais para exercerem regência, a lei determina que os
convites somente podem ser endereçados a “individualidades, nacionais
ou estrangeiras, cuja reconhecida competência científica, pedagógica e ou
profissional na área ou áreas disciplinares em causa esteja comprovada
curricularmente”, sendo necessário que esse convite se fundamente “em relatório
subscrito por, pelo menos, dois professores da especialidade, que tem de ser
aprovado pela maioria absoluta dos membros do Conselho Científico em exercício
efectivo de funções, aos quais é previamente facultado o currículo da
individualidade a contratar”. Ora, nada disso foi cumprido pela Faculdade de
Direito da UNL, como confirmou o PÁGINA UM junto de professores catedráticos
desta instituição. Como um regente de uma cadeira de mestrado tem de ser
obrigatoriamente, independentemente de estar no quadro ou ser convidado, um
professor catedrático, associado ou auxiliar – até por praticar actos
administrativos –, a irregularidade da nomeação de Gouveia e Melo reveste-se de
grande gravidade. No limite, as notas atribuídas podem ficar sem efeito por
terem sido concedidas por alguém sem competências legais.
A regência da cadeira de Segurança Marítima atribuída a
Gouveia e Melo está ainda patente no
próprio site da instituição universitária para o próximo semestre, que
começa em Fevereiro, o que indicia que continuará nestas funções, mesmo em
situação ilegal, quando sair da chefia do Estado-Maior da Armada no final do
presente mês. Porém, estranhamente, o seu nome foi ‘desviado’ nos últimos dias
da lista de “Professores/as Convidados/as” para a ambígua lista de parcerias
sem contrato directo com a Faculdade de Direito da UNL. Uma alteração no corpo
docente terá sido uma tentativa de ‘apagar’ o rastro de ilegalidades, mas os
registos históricos da Internet não deixam margem para dúvidas de que a
universidade pública concedeu a Gouveia e Melo um estatuto que nunca poderia
ostentar.
Ligação à Marinha estabelecida de
forma informal por Assunção Cristas começou ainda antes do anúncio em Fevereiro
de 2023.
De facto, em registos consultados pelo PÁGINA UM, a primeira
vez que Gouveia e Melo surge como Professor Convidado na lista do corpo docente
da Faculdade de Direito da UNL é de 28
de Fevereiro de 2023, imediatamente a seguir ao anúncio da sua
‘contratação’. Ao longo de 2023, o mesmo registo encontrou-se em 29
de Março, em 5
de Abril e em 30
de Setembro. E continuou este ano, já com a segunda regência de Gouveia e
Melo à cadeira de Segurança Marítima (ano lectivo de 2023/2024), encontrando-se
registos em 24
de Fevereiro, em 13
de Abril e em 20
de Julho, último registo que consta no Archive.org.
Em consulta do PÁGINA UM, não gravada, no início do passado
mês de Novembro, Gouveia e Melo mantinha-se ainda na lista de “Professores
Convidados”, o que indicia que a sua inclusão não foi um mero lapso
administrativo, mas sim que a sua ‘transferência’ terá sido fruto de
diligências superiores de ocultar a situação ilegal. Mantém-se, porém, para
Gouveia e Melo uma particularidade: tem uma página própria com um endereço de
correio electrónico da Faculdade de Direito da UNL, mas omitindo as suas
funções de regência da cadeira de Segurança Marítima.
O PÁGINA UM colocou perguntas concretas a Gouveia e Melo
sobre esta sua ‘contratação’ por uma universidade pública à margem da lei.
Procurou saber-se se a regência da cadeira de Segurança Marítima foi feita ao
abrigo de alguma parceria com a Marinha ou ele fora contratado exclusivamente
para a regência e docência, sendo que, no caso de uma parceria (por duas
entidades públicas), se solicitou o documento. Pediu-se também a confirmação,
no sentido de aferir informações recolhidas junto de antigos alunos do mestrado,
se Gouveia e Melo nunca deu qualquer aula, mandando oficiais da Marinha prestar
indevidamente funções de docência. Também se procurou averiguar se o ainda
Chefe do Estado-Maior da Armada recebera algum título académico e se continuará
a regência depois de abandonar o cargo.
Campus de Campolide, onde ainda
funciona a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.
Em resposta, transmitida pelo gabinete de relações públicas
do Estado-Maior da Armada, e não assinada nem assumida por Gouveia e Melo,
apenas se refere, sem enviar qualquer comprovativo, que a “lecionação da
cadeira de Segurança Marítima insere-se numa parceria entre a Marinha
Portuguesa e a Nova School of Law”, acrescentando somente que ”as aulas são
ministradas por oficiais da Marinha, tendo o Almirante Gouveia e Melo
contribuído, como regente dessa cadeira, de forma gratuita e no quadro da
[ignota] parceria”.
O PÁGINA UM também colocou diversas questões, em concreto,
tanto à actual directora da Faculdade de Direito da UNL, Margarida Lima Rego –
que tomou posse em Outubro de 2022 – como a Assunção Cristas e a Mariana França
Gouveia. Apesar de todas terem recebido a mensagem do PÁGINA UM, todas optaram
por não responder, remetendo para a LPM – uma agência de comunicação,
actualmente sem qualquer contrato válido com a instituição universitária, segundo registos do Portal Base –
uma breve declaração: “A Nova School of Law conta com a colaboração da Marinha
Portuguesa no Mestrado em Direito e Economia do Mar. No âmbito dessa
colaboração, o Almirante Gouveia e Melo, na sua qualidade de Chefe de Estado
Maior da Armada, e a sua equipa são responsáveis por lecionar a unidade
curricular de Segurança Marítima”. Nada é dito sobre os procedimentos de
atribuição do cargo de Professor Convidado a Gouveia e Melo, nem sobre a
ausência de deliberação do conselho científico, nem sobre como a regência e a
lecionação de uma cadeira de um mestrado ser feita por pessoas não qualificadas
nem sobre se o ainda Chefe do Estado-Maior da Armada vai continuar em funções
universitárias em situação ilegal.
O fundador e antigo coordenador do mestrado em Direito e
Economia do Mar, o catedrático Jorge Bacelar Gouveia mostra-se atónito com esta
situação. “A contratação de docentes convidados é excepcional e deve basear-se
num currículo adequado e com bibliografia na área, o que não acontece” no caso
de Gouveia e Melo, diz. E acrescenta ser “até caricato que, no programa
apresentado, estejam elementos bibliográficos do regente anterior [Armando
Marques Guedes], que podia ter continuado a lecionar, mas que foi afastado”.
Assunção Cristas (esquerda) e
Margarida Lima Rego, actual directora da Faculdade de Direito da Universidade
Nova de Lisboa.
Catedrático decano da Faculdade de Direito da UNL, Bacelar
Gouveia diz não ser do seu conhecimento nem consta que “o Conselho Científico
alguma vez tenha aprovado um relatório assinado por dois docentes a propor a
contratação de Gouveia e Melo como docente convidado, como manda a lei”,
reforçando que, “pelo menos, esses relatórios nunca constaram da ordem de
trabalhos nem a questão foi discutida em Conselho Científico, como estabelece o
Estatuto da Carreira Docente Universitária”.
O PÁGINA UM vai requerer formalmente tanto à Marinha como à
Faculdade de Direito da UNL diversos documentos, incluindo a alegada parceria e
actos da regência de Gouveia e Melo, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos
Administrativos, seguindo uma intimação para o Tribunal Administrativo de
Lisboa caso um dos ‘bastiões’ do ensino público universitário da área jurídica
se mantenha irresoluto em esclarecer este caso.
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