DORMIR SOBRE UMA CAMPA
Por Onofre Varela
Eu, que sou leigo em técnica avançada, penso que as novas tecnologias usadas pelos militares vão muito para além dos drones-bomba. Também servem para fazer a vigia das instalações militares, em termos de segurança, substituindo a tradicional figura do “sentinela”.
Como eu pertenço “àquela espécie que morre muito”… chamada avô… quer dizer que cumpri serviço militar na década de 1960 (já lá vão 60 anos), no tempo em que as tecnologias militares com tanta sofisticação só se viam em fitas de ficção científica made in Hollywood.
Um dos serviços militares que cabiam aos soldados era, exactamente, a guarda dos quartéis na figura do sentinela. Todas as noites, um grupo de três sentinelas para cada posto (a área do quartel determinaria o número de postos) fazia a segurança do quartel a partir da “Casa-da-Guarda”, cumprindo dois turnos de duas horas, desde as sete horas da tarde até às sete horas da manhã do dia seguinte, alternando as equipas; quem cumpria o primeiro turno (das 19 às 21horas) repetia o serviço no quarto turno (da uma hora às três horas da madrugada).
Lembro-me de uma noite estar de sentinela no quartel CICA 1 (junto ao Palácio de Cristal, no Porto) e ter pensado que se algum dia tivesse de fazer aquele serviço no mato de África em ambiente de Guerra Colonial, iria cagar-me de medo!…
Mas as coisas acontecem… calhou-me cumprir serviço militar em Angola… e a realidade acaba por se sobrepor à fantasia dos nossos pensamentos. Não sendo eu um cagarola por definição, também não sou nenhum herói definido… e vivi um caso que, garanto, não pode ter sido vivido por mais alguém. Se tal acontecesse seria coisa tão rara quanto a possibilidade de sair o prémio total do Euromilhões duas vezes seguidas nos mesmos números.
Como não tenho sortinha nenhuma, aconteceu que na primeira noite passada no mato, no norte de Angola (precisamente a passagem de ano, de 31 de Dezembro de 1965, para 1 de Janeiro) havia necessidade de montar segurança ao local onde a Companhia tinha acabado de chegar para render os militares que ali terminavam a comissão de serviço. Os militares que chegavam só tomavam conta das camas dos militares que partiam, quando eles partissem…
Havia um período de cerca de cinco ou seis dias em que as companhias estavam sobrepostas (para a passagem de informações vitais sobre a região, por parte dos capitães) e aqueles que chegavam tinham que dormir em qualquer lado, no chão, porque não havia camas nem casernas disponíveis.
À entrada da localidade que nos calhou para cumprimento da comissão de serviço (a vila do Úcua, nos Dembos), havia as ruínas do que tinha sido um restaurante, com posto de venda de gasolina (ainda lá estava, baloiçante, a tabuleta com a estrela da Texaco no cimo de um poste) que foi incendiado no início da revolta dos nacionalistas em Março de 1961.
Tais ruínas serviram-nos de aquartelamento, e foi preciso fazer a guarda do lugar em todas as noites que lá dormimos. Feita uma lista para os quartos de sentinela a cumprir, coube-me abrir o activo. Fi-lo, e não senti o tal cagaço que antevira, nem me borrei!… Às sete horas da tarde, ainda com sol vivo, subi para um velho depósito de água desactivado, onde fiz a primeira guarda do lugar, sendo rendido duas horas depois, já noite caída.
Dali em diante, e até sair do Úcua 16 meses depois, cumpri quartos de sentinela todas as noites e, como se prova porque estou a recordar o acontecimento 60 anos depois, não morri de medo!…
Após sair daquele primeiro serviço de sentinela, obviamente, tive que dormir. Para tal tinha uma manta e um corpo cansado. A maioria dos meus camaradas deitara-se no chão do lado interior das ruínas, e os restantes no lado exterior.
Já era difícil caminhar intramuros sem pisar alguém. Escolhi o lado de fora. Tacteei o terreno procurando um local que me parecesse mais adequado para servir de leito, encontrei um montículo óptimo para improvisar um travesseiro, estendi a manta e deitei-me abraçado à metralhadora (FN) para, em caso de necessidade, poder estar operacional rapidamente.
Em Angola a noite cai repentinamente, como pano de boca de teatro no final da representação… e com a mesma pressa que o Sol tem em se recolher, assim ele desperta. Às cinco horas da manhã já nos espreita com timidez e frescura, para logo crescer e aquentar sem aviso.
Foi assim que bem cedo acordei com um raio de sol a lamber-me a cara. Fiquei imóvel a olhar os arbustos próximos e a mata distante, que eram, afinal, a mobília do meu quarto naquela primeira noite de mato, e precisei de alguns momentos para me situar e arrumar o cérebro sonolento. À frente dos meus olhos, rasante ao solo, uma forma bizarra, forrada de um verde escamado, despertou-me a curiosidade. Olhei melhor e o meu sentido de sobrevivência fez-me erguer como que se impulsionado por uma mola, ao identificar aquilo com uma cobra.
Já em pé verifiquei que os meus sentidos foram enganados. Tratava-se de uma tosca cruz feita com dois ramos de árvore, tombada e coberta de musgo e líquenes. Olhei melhor o pequeno recinto onde dormira e identifiquei o meu travesseiro. Tinha cumprido um sono reparador… sobre uma campa!
Este último parágrafo podia constituir um óptimo fecho para uma crónica… mas a história não termina aqui. Tem o seu epílogo cerca de 35 anos depois.
Nas minhas deslocações frequentes à delegação de um banco na baixa do Porto, acabei por fazer amizade com o caixa. Um dia ele aposentou-se e deixei de o ver. Numa tarde do mítico ano 2000, cruzámo-nos na baixa portuense e paramos a tagarelar.
Como quase sempre acontecia nas minhas conversas de então (motivadas, talvez, por qualquer trauma de guerra), falei de Angola. Ele quis saber onde estive. Quando proferi a palavra Úcua, o ex-empregado bancário fez uma cara de espanto e contou-me:
– Vivi no Úcua mais de vinte anos. Quando tiveram lugar os trágicos acontecimentos de 10 de Abril de 1961, escondido na noite ouvi choros e gritos de desespero, tiros e urros dos terroristas que chacinavam a população. Pela manhã havia cinco cadáveres esquartejados na esplanada do café-restaurante à entrada da vila, já destruído pelo fogo no primeiro ataque à povoação em Março. Eu e um amigo abrimos uma cova junto à parede e enterrámo-los!
Estremeci!…Não me parecia ser verdade o que ouvia!… Aquilo era coisa de filme que não acontecia a ninguém!… Mais de três décadas depois encontrei, casualmente, o coveiro daquela sepultura que me serviu de travesseiro e que, afinal… era uma vala comum!?…
Após aquela noite aprendi a dormir sobre o que quer que fosse. Dormi em camas verdadeiras, em leitos improvisados sobre o capim, debaixo do rodado de Unimogues e Mercedes, na areia da praia, no solo duro em tenda de campanha, sobre caixotes de madeira e em "burro-de-mato" (espécie de maca de lona com pés em forma de X), sem experimentar insónia e dormindo que nem um justo.

Comentários