A Liberdade de expressão e os seus limites

Há em Portugal a vocação censória que põe em causa a liberdade conquistada em meio século de democracia. Nota-se a tentação de limitar a liberdade de expressão e de punir o humor. Não é ainda o regresso à ditadura, mas urge refletir sobre direitos individuais e a tentativa da sua limitação.

É precário o equilíbrio entre os deveres e os direitos, e não é aceitável que o adágio popular “o meu direito termina onde começa o do outro” se converta em axioma. Basta a censura social para levar a constrangimentos inaceitáveis.

As únicas restrições aceitáveis à liberdade de expressão são as do Código Penal.

A moral é a ciência dos costumes, não é um princípio universal para todas as culturas e épocas. Há divergências entre o crime e a moral. O adultério, v.g., é imoral, mas não é crime, e crimes graves como o incesto, a escravatura e a tortura foram morais e legais. Até a antropofagia! Ainda hoje a homossexualidade e o adultério feminino são crimes graves em vários países, e legal a pedofilia, através do matrimónio. Homens de qualquer idade podem comprar e desposar crianças a partir dos 9 anos!

Se o facto de ferir preconceitos, convicções ou normas morais, individuais ou de grupo, limitar o direito de expressão, privamo-nos dele. A defesa de uma ideologia fere quem perfilha a contrária, a de um clube desportivo ofende os adeptos do clube adversário, a carne de porco, o álcool, a música e a arte horrorizam 2 mil milhões de crentes, a defesa dos Direitos Humanos é postergada por metade da Humanidade, etc., etc.

Há um crime de sabor medieval que persiste no Código Penal português com pena até um ano de prisão, a blasfémia, sabendo-se que é blasfémia considerar os sacramentos placebo e inútil a liturgia, como já o foi testemunhar o movimento de rotação da Terra e a evolução das espécies. Felizmente, a jurisprudência portuguesa privilegia a liberdade de expressão.

Quem persuade muçulmanos a aceitar direitos iguais para homens e mulheres ou hindus a abolir as castas, a dessacralizar as vacas e a aceitar que a viúva não se desonra por não se deixar cremar com o defunto ou por voltar a casar?

Quem convence judeus ultraortodoxos de que a carne de porco, a higiene e a liberdade são legítimas, e alguns cristãos de que os transplantes, a saúde reprodutora da mulher e a sua autodeterminação sexual são direitos inalienáveis?

A homofobia, o racismo, a xenofobia e a misoginia já foram virtudes, hoje são crimes. A homossexualidade, a liberdade religiosa, o pluralismo político e o livre-pensamento já foram crimes, hoje são direitos.

Considero justo o direito injuriar o ateísmo, a social-democracia e a República, opções filosóficas e cívicas que defendo, e as crenças, a monarquia e quaisquer outros modelos políticos, económicos ou religiosos. Defendo o direito de combater ideias, não o de proibi-las, e nunca o de molestar pessoas que as perfilhem.

Exigir que não se diga mal dos mortos, por mais criminosos que tivessem sido em vida, ou das tradições, por mais abjetas que sejam, é uma forma de regular o espírito crítico, de defender o imobilismo e de castrar o livre-pensamento.

Sem direito ao contraditório não há liberdade de expressão. Sem neutralidade do Estado, não há liberdade religiosa ou política.

A direito à crença tal como à descrença ou à anti crença deve ser respeitado e defendido.

Diário de Coimbra - 4 de julho de 2025

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