DE NOVO A ORDEM DOS ADVOGADOS (COMENTÁRIO - II)

Só agora me é possível dar continuação ao meu comentário [link] ao post de Rui Cascão intitulado “De novo a Ordem dos Advogados” [link], em que são colocadas importantes questões sobre a advocacia e a Justiça.

1. Como já dissemos na 1ª parte deste comentário, o artigo 238 da Constituição preceitua que “A lei (…) regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça.”
A advocacia não é pois uma profissão como outra qualquer; é constitucionalmente reconhecida como elemento essencial à administração da justiça, tal como as magistraturas judicial e do Ministério Público.
Uma das traves mestras do múnus do advogado é a sua independência; o advogado não pode estar dependente de quaisquer poderes ou interesses. Compete à Ordem – isto é, ao conjunto dos advogados – defender e garantir essa independência. A regulação da profissão por quaisquer “comissões paritárias” seria altamente lesiva dessa independência.
Outro elemento essencial ao exercício da advocacia é a deontologia profissional. Os advogados estão obrigados a observar um conjunto muito vasto de regras deontológicas rigorosíssimas. Para garantir o cumprimento dessas normas tem de haver uma entidade que exerça o poder disciplinar. Essa entidade só pode ser a própria Ordem. Se o advogado estivesse sujeito a ser julgado por outrem que não os seus pares – designadamente pelos juízes ou pelo Governo, como acontece em certos países onde não existe Ordem – ficaria em causa a independência dos advogados e correr-se-ia o risco de virmos a ter uma advocacia timorata e subserviente, o que seria o pior que poderia acontecer.
Não se pense com isto que a Ordem é complacente no exercício do poder disciplinar. Todos os anos há centenas de advogados sancionados, alguns até com expulsão.
Mas não se pense também que a Ordem está totalmente subtraída ao controlo do Estado. Não está: todas as decisões definitivas dos seus órgãos são passíveis de recurso para os tribunais administrativos.

2. O estágio é essencial para preparar licenciados em direito para o exercício da advocacia. Ninguém sai da Faculdade preparado para começar de imediato a exercê-la (o mesmo sucede, aliás, com os juízes e os magistrados do M. P.). As faculdades de direito não formam os alunos para esta ou aquela profissão concreta. É pois indispensável um tirocínio. E é no âmbito da Ordem que ele deve ser feito. O estágio ministrado pela Ordem pode ser melhorado, mas nunca eliminado ou substituído por outra coisa.

3. A resolução alternativa de litígios funciona, e sempre funcionou, sobretudo nos litígios do foro cível entre grandes empresas, que, para evitar as demoras dos tribunais, se põem de acordo para submeter o litígio a arbitragem. Nunca ninguém impediu ninguém de a ela recorrer. Mas é óbvio que essas arbitragens são caríssimas, pois são normalmente exercidas por jurisconsultos de nomeada, muitas vezes professores universitários, que cobram honorários elevadíssimos.
Já não posso porém concordar que o próprio Estado recorra à arbitragem, quando tem os seus próprios tribunais.
Também me parece inadmissível que alguém seja obrigado a submeter-se a meios alternativos de resolução de conflitos. Todo o cidadão tem direito a ver o seu caso apreciado pelo poder judicial.
Quanto às “causas bagatelares”, normalmente só quem “está de fora” é que as considera como tais. Há sem dúvida causas de pouca monta, mas por vezes são importantíssimas do ponto de vista de quem está envolvido nelas. Por outro lado, os tribunais têm uma função de pacificação social que é indispensável. Todos sabemos que pequenos litígios geram por vezes graves conflitos quando não são adequadamente resolvidos no foro próprio.

4. Quanto à “agilização processual”, fala-se muito em “manobras dilatórias” dos advogados. Fala-se demais e quase sempre erradamente.
Deve começar por dizer-se que o próprio Estatuto da Ordem proíbe tais expedientes, no seu artigo 85º, que preceitua ser dever do advogado para com a comunidade “Não advogar contra o Direito, não usar de meios ou expedientes ilegais, nem promover diligências reconhecidamente dilatórias, inúteis ou prejudiciais para a correta aplicação da lei ou a descoberta da verdade”.
É também de rejeitar o discurso antigarantístico, que muitas vezes resvala para posições violadoras dos direitos do Homem. Aquilo a que se chama “garantismo” mais não é do que o conjunto de meios legítimos de defesa dos cidadãos perante eventuais abusos do poder.
Não há, em Portugal, demasiado “garantismo”, muito menos no que toca aos recursos. Há inúmeras decisões judiciais de que não se pode recorrer, por muito erradas que sejam – e por vezes são mesmo manifestamente erradas. E da maior parte das decisões recorríveis só se pode recorrer em um grau, para as Relações, e já não para o Supremo.
E não se diga que são os advogados que fazem perder tempo com recursos. Proferida uma decisão, o advogado tem escassos dias para elaborar e apresentar recurso: 30 nos processos civis e 20 nos penais. Portanto, se os recursos se arrastam é nas mãos dos julgadores.

5. Os advogados não têm pois quaisquer privilégios. Têm certas imunidades e prerrogativas, que lhes são concedidas não no seu próprio interesse, mas no interesse dos seus constituintes, no interesse da comunidade, no interesse da boa administração da justiça.

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