Deambulações à volta de Sánchez, do socialismo e social-democracia …
O regresso de Pedro Sánchez à liderança do PSOE link não pode ser considerado como sendo mais um acidente de percurso da Esquerda socialista europeia.
O facto de os partidos socialistas e sociais-democratas europeus terem sofrido, nos últimos tempos, severos revezes eleitorais, em diversos Países e em diferentes geografias, acarretará necessariamente consequências.
Para os mais cépticos nas convicções de Esquerda trata-se de uma irremediável ‘pasokização’ dos partidos socialistas vitimizados pelo colaboracionismo e convivência com os ideais neoliberais. Existem hoje conceitos que carecem de melhor explicitação.
Por exemplo, a tão divulgada ‘economia social de mercado’ encerra, à primeira vista, uma contradição primária entre o social e o mercado. Na verdade, não existe dirigente europeu (da Direita à Esquerda ‘clássicas’) que não recorra a este jargão para balizar os seus programas (eleitorais e de Governo) e definir o modelo de desenvolvimento.
Muitos partidos socialistas incorporaram esse conceito, a começar pelo SPD alemão e, hoje, estão a pagar uma elevada factura. Na verdade, a ‘economia social de mercado’, é um conceito de matriz germânica que, depois de hesitações iniciais, foi insistentemente usado pelo chanceler Ehrard, para desenvolver e ‘justificar’ o chamado ‘milagre alemão’. Ludwig Ehrard apoiava-se nas suas raízes cristãs-democratas e introduz o qualificativo ‘social’ para amaciar a dureza da economia de mercado (tout court). Fez escola dentro da Direita de brandos costumes, falinhas mansas e caritativa ‘compaixão social’ que emerge depois da II Guerra Mundial se confunde com os todo poderosos mercados despidos de qualquer laivo social. Todavia, essa 'nuance político-social’ abriu caminho a um período áureo da social-democracia (nomeadamente a nórdica).
De facto, na Alemanha, na Grã- Bretanha, em França e em Espanha (para nos circunscrevermos a grandes economias europeias), o trambolhão Schrōder, a terceira via blairista, a dupla Hollande-Valls e a parelha Gonzalez/Diaz, cederam lugar a outra abordagem política mais consentânea com a doutrina original (socialista), isto é, existe uma certa movimentação no sentido do regresso às origens, o que motivou – da parte das forças conservadoras e dos média - a imediata classificação como sendo um ‘radicalismo’.
A situação do SPD alemão, sob a batuta de Martin Schulz, permanecerá indefinida até ao próximo Outono.
A Esquerda socialista, numa fase inicial, ainda resistiu a esta transformação entre uma economia social onde se colocam as questões de propriedade dos meios de produção e a planificação e a economia social de mercado em franco deslizamento para um liberalismo selvagem. A queda do muro de Berlim e a implosão dos regimes comunistas do Leste europeu, acabaram por derrubar essas resistências. Para os muitos que previam a fim dos partidos comunistas na Europa restam poucos daqueles que associaram a esta implosão o fim dos partidos socialistas e social-democratas.
Neste momento, estamos numa situação com preocupantes semelhanças ao início do século XX quando a cisão no movimento socialista traduziu a capitulação da social-democracia frente ao capitalismo e conduziu a uma guerra mundial. Na altura digladiavam-se as correntes revolucionárias e reformistas onde sobressaiam Jaurès (França), Rosa Luxemburgo (Alemanha), Adler (Áustria), Hardie (Grã-Bretanha), entre noutros. Hoje, parece que estamos a percorrer os mesmos itinerários com outras personagens (de muito menor qualidade).
Hoje, a Esquerda que emerge eleitoralmente derrotada, por todo o lado, mais parece empenhada em ‘salvar o capitalismo’ do que em afirmar-se como uma alternativa. Não fará caminho nesta senda. Os cidadãos preferirão sempre o original à cópia.
O que ressalta destes conturbados tempos para as diferentes Esquerdas é o grande embuste que representa a anunciada e apressadamente decretada ‘morte do marxismo’. Na verdade, os salvados dos partidos socialistas e social-democratas, em franca decomposição após a queda do muro de Berlim, empurrarão as novas (futuras) lideranças para um pródigo regresso às ideias (à ideologia) fundadoras.
Não vai ser fácil essa retificação já que pressupõe uma travessia do deserto que se adivinha relativamente longa. Mas esta mudança passa pela capacidade de assumir, sem pruridos, nem tabus, a filosofia marxista que considera os mercados (que escapam a qualquer tipo de regulação) como uma fonte de exploração e especulação e um antro gerador de desigualdades. Na verdade, o método de análise marxista renasce nos dias que correm como um instrumento indispensável para compreender como e porquê chegamos aqui.
Esperemos que os dirigentes dos partidos socialistas, operários, trabalhistas e sociais-democratas se demarquem do colete-de-forças tecido pela direita neoliberal. As novas gerações enfrentarão outros desafios mas a análise política vai ser sempre indispensável.
Pedro Sánchez com toda a probabilidade não tem estofo nem envergadura política para ser o mentor de um ‘renascimento socialista’. Mas, na realidade, conseguiu travar a ‘onda social-liberalizante’ que tentou apossar-se do PSOE e que contra a corrente aceitou conviver pacificamente com a Direita ultraconservadora representada por Mariano Rajoy.
A recondução na liderança é um importante (re)começo para alguém que já foi capaz de dizer NO (!), à Direita.
Comentários
A partir daí deixou de ser necessário fingir que o "socialismo em liberdade" era viável, aquele socialismo que fabricava estados sociais apoiando-se nos banqueiros anarquistas que defendiam ser possível construir o socialismo do lado de cá do muro.
Só que o muro caiu e agora os banqueiros a sério, à antiga, não se fartam de cantar "oh tempo volta pra trás!".
O tempo está a voltar para trás, está a voltar para antes do 1ª guerra (foi só há 100 anos), em que os direitos dos trabalhadores eram nulos. Só não voltaremos à jornada de trabalho de 50 horas porque entretanto as máquinas e os automatismos preencheram o espaço de muitos postos de trabalho, criando um exército de desempregados semelhante ao de então. E não faltam patrões a desejar esse regresso...
Para que volte a haver de novo esquerda é necessário que surjam novos teóricos a interpretar de uma forma correta a atual luta de classes. A velha-esquerda-marx-lenine já era...
Outra coisa foi - e será - a concretização política, económica e social da doutrina marxista onde podemos verificar que os erros e desvios foram mais do que muitos. Ao nível da construção filosófica e ideológica não consigo divisar outro vulto que suplante a visão de Karl Marx e que a evolução do capitalismo continua a manter atuais. É, de facto, lamentável que mais importante e fecunda teorização socialista remonte ao final do século XIX. Mas a realidade parece ser essa.
Todavia - e apesar de todas as mudanças políticas, económicas, financeiras e sociais - continua a ser difícil encaixar as 'derivas social-liberalizantes' que, muitos dos atuais dirigentes socialistas, foram adotando como sendo uma saída politicamente viável para a encruzilhada onde a Esquerda está efetivamente mergulhada.
Na verdade, quando olhamos para a evolução do capitalismo verifica-se que o modelo não se manteve inalterável desde os tempos iniciais de afirmação política e social da burguesia. Essa afirmação necessitou de uma revolução primitiva (a Liberal) mas não dispensou outras 'revoluções' designadas por 'industriais'. A recente fase evolutiva do capitalismo, i. e., o 'monopolista-financeiro' é o produto apurado do outros modelos previamente utilizados como, por exemplo, são o mercantil (comercial) e o industrial, mas há a clara noção que estamos perante um quadro descrito por Marx e que diz respeito à acumulação de capital que transitou do seu estado primitivo (séc. XV/XVI) para o atual.
Todos estes processos evolutivos, mesmo num período de rápidos avanços tecnológicos, necessitam de tempo para consolidar-se. Não se percebe como se condena liminarmente o socialismo tendo como base a malograda 'experiência soviética' que de modo simplista e grosseiro de qualifica como leninista ou leninista/estalinistas.
A ex-URSS não deve julgada como sendo um colapso da análise marxista (filosófica e ideológica) mas, quando muito, avaliada pelo falhanço das conceções e praxis leninistas, ou estalinistas e, por tudo, o que foi acontecendo no Leste europeu até à sua implosão nos anos 90.
Foram as 'cíclicas crises capitalistas', decorrentes da aplicação da ideologia liberal que estiveram na gestação conceptual do modelo socialista pelos utopistas do final do século XIX.
Todos constatamos estas crises cíclicas do capitalismo, pagamos a fatura mas somos levados a aceitar que é necessário contemporizar com uma nova e seguinte fase que irá corrigir os 'pecados originais' do sistema relativos, essencialmente, ao modo de produção e redistribuição da riqueza. Ninguém ou muito poucos, no Ocidente, perante a cataclísmica crise de 1929, colocou em causa o sistema capitalista.
Em relação aos modelos socialistas (e/ou comunistas) usamos a experiência soviética para encerrar, sem contemplações, o assunto - 'socialismo'. Isto é, face ao primeiro insucesso (prático) o passo seguinte é atirar com o socialismo para o caixote do lixo da história encerrar o problema e vitoriar o liberalismo.
Não consigo entender o porquê desta iniquidade (política) que me leva a interrogar:
- Será que o socialismo ideologicamente pensado, trabalhado e proposto por vários pensadores no final do séc. XIX, entre os quais Marx foi um expoente (e exponente) não tem direito a outras hipóteses e deve ser liminarmente condenado?
Houve outras, claro, que foram reprimidas por golpes militares de inspiração americana, como o Chile ou a Guatemala, mas são a exceção. Todas as restantes vias terceiro-mundistas (o termo não tinha originariamente uma conotação negativa) ou se converteram no Capitalismo mais selvagem (China, Índia e Vietname), ou degeneraram em Capitalismo de Estado que protege oligarquias corruptas (Angola e a própria Rússia, por exemplo). Os exemplos são legião. E dado o cortejo infindável de vítimas, não queiramos olhar para os modelos de governação socialistas como meras experiências que falharam ontem mas podem funcionar amanhã. O problema do Socialismo Estatizante é o controle absoluto do Estado pela classe dirigente (ainda por cima, uma vanguarda de indivíduos cinzentos e medíocres, quando não psicopatas). E esse é um pecado original do Marxismo e não um acrescento Leninista-Estalinista.
Não se trata de vitoriar o Liberalismo (Fukuyama fê-lo com os tristes resultados que se conhecem) mas sim de admitir de uma vez por todas que qualquer forma de Governo que coloque o Povo ou o Género Humano em abstrato à frente da proteção dos Direitos de cada Indivíduo irá acabar mais tarde ou mais cedo com sangue de inocentes nas mãos. E isso deveria chegar para a rejeitarmos sem apelo nem agravo...
Os países que se reclamaram 'do socialismo' à volta de uma conceção marxista foram muito influenciados por protagonistas locais que lhe conferiram particularidades (e perversidades) sempre presentes, mas escamoteadas nas análises e na propaganda.
No entanto, continuo a pensar que a 'inspiração marxista' (para não escorregar para dogmatismos doutrinários) quando se aborda, p. exº., relações de trabalho, de produção e distribuição da riqueza, continua a ser útil aos partidos de Esquerda (socialistas, trabalhistas, sociais-democratas, etc.).
E será, também, muito mais eficaz em termos políticos e sociais do que outras nascentes (e recentes) derivas 'social-liberalizantes', como o 'blairismo', etc.
O Marxismo é útil enquanto ferramenta de análise do Capitalismo, desde de que despojado de racionalizações como a da 'falsa consciência', por exemplo, que menoriza os povos só porque incapazes de se deixarem deslumbrar pela sociedade sem classes. E deve tomar em conta que a própria análise económica evoluiu desde os tempos de Marx que foi retirar a inspiração a David Ricardo. O Capitalismo tem-se revelado bem mais resiliente do que o filósofo de Trier parece ter previsto, até pela sua perpétua capacidade de se reinventar, veja-se a financeirização (que também permite encontrar meios que faltariam a Estados para alimentar a revolução tecnológica) ou a revolução do marketing, que se baseia na criação de 'falsas' necessidades, uma vez supridas as básicas (nos Países desenvolvidos, claro está).
Quanto ao 'Blairismo', em primeiro lugar Blair e Brown foram bastante mais radicais do que gosta de ser admitido pela Esquerda (é sempre mais fácil arranjar bodes expiatórios do que pensar, ver https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/may/13/scary-jeremy-corbyn-not-radical-at-all-labour-manifesto), mas foram vítimas de dois eventos, a malfadada invasão do Iraque, em que Blair decidiu seguir Bush contra as evidências de que o Iraque se encontrava desarmado e os riscos de que acontecesse o que aconteceu, e depois a crise de 2008, em que Brown agiu bem, salvando o sistema financeiro britânico, mas arcando com as culpas pelo endividamento do RU que se seguiu. Em segundo lugar, existem elementos do Liberalismo, como a defesa intransigente do Estado de Direito e dos direitos individuais que os Socialistas fariam bem em abraçar sem tergiversações, como já bem fazia Mário Soares nos idos de 50... O Socialismo do futuro será anti-autoritário e logo não-Marxista, ou não será Socialismo...
"O Marxismo é útil enquanto ferramenta de análise do Capitalismo"...
Quanto ao "blairismo" não sou tão complacente. Torna-se difícil deixar de olhar
para essa deriva como uma gestão acrítica e colaboracionista do capitalismo
(é aqui que a filosofia e a análise marxista tem o seu lugar).