O Vale dos Caídos e a Espanha franquista

O anúncio da transladação dos restos mortais de Francisco Franco, do Vale dos Caídos, no cumprimento da decisão unânime, aprovada em sede parlamentar, não é apenas um ato de reparação histórica às vítimas, é um corte com a herança que envergonha o País perante a História e o compromete no seio dos países democráticos.

Pedro Sánchez apenas se limitou a confirmar o cumprimento do compromisso e da sua obrigação, e acordou demónios adormecidos do fascismo. Sobressaltou os herdeiros da Falange, inquietou os filhos dos algozes, levou o alvoroço às sacristias, fez tremer báculos, agitar mitras e enraivecer velhos purpurados. Até a Fundação Franco, que nenhum político teve coragem para extinguir ou, sequer, investigar, praguejou contra a medida de higiene que a democracia exige.

Não há outro país europeu que, por masoquismo ou falta de pudor, perpetue a memória de um genocida e o venere, por respeito aos direitos humanos e ao pluralismo político, herdados do Iluminismo, e assimilados na sua matriz civilizacional.

Quem aceitaria hoje que Mussolini, Hitler, Pétain, Tiso ou Salazar tivessem uma guarda de honra permanente a homenageá-los? Ou, noutro quadrante, Estaline, Pol Pot, Enver Hoxha ou Ceauşescu? Só resiste o culto a Kim Il-sung, num obscuro país, e a Mao num regime ditatorial, onde grassa o capitalismo selvagem, sob o pseudónimo de comunismo e a cooperação do partido que mantém o nome.

Franco é uma referência sinistra entre os maiores genocidas do século XX, um precursor europeu de Pinochet, uma réplica caucasiana de Idi Amin. No entanto, aquela Espanha que parecia ruminar em silêncio o remorso e a vergonha, acordou para a contestação às decisões democráticas na defesa da memória do carrasco que repartia com a Custódia o direito a desfilar sob o pálio, nas procissões pias.

O nacionalismo e o populismo são chagas que dilaceram de novo a Europa, da Áustria à Itália, na própria Alemanha, da Polónia à Hungria. Neste último país, a ajuda altruísta a refugiados passou a crime, punível com prisão. Parece que o exemplo dos EUA, após a eleição de um presidente inculto e amoral, está a singrar na Europa das Luzes, esquecida a sua herança humanista, mas nenhum país reverencia ainda a memória de um déspota.

Com a experiência da cruel repressão da Revolução das Astúrias (1934) com tropas da Legião Espanhola, depois da vitória, apoiado pela Alemanha, Itália e Portugal, Franco estimulou durante cinco anos a alucinada chacina de centenas de milhares de pessoas, mortas em campos de concentração, execuções extrajudiciais ou em prisão.

O destino dos restos mortais do genocida cabe à família, que não pediu perdão ao País e ao mundo, tal como o Vaticano, que esqueceu o apoio de Pio XI, considerando Cruzada a sedição, e a dos bispos espanhóis aos de todo o mundo a manifestar o seu entusiasmo. 

À Espanha democrática cabe dar um funeral digno às vítimas do franquismo e alterar o significado ao lúgubre monumento que perpetuou a memória e a vontade do ditador.

Enquanto não se alteram a constituição e o regime político, e se extinguem os títulos nobiliárquicos, cabe ao governo do PSOE solicitar ao rei a extinção do título de ‘duque de Franco’ que, no dia da moção de censura, que remeteu o PP à oposição, foi assinado pelo ministro da Justiça, Rafael Catalá, proclamando Carmen Martínez-Bordiú como nova duquesa de Franco, com o título que pertencera a Carmen Franco, filha do ditador, e solicitado algum tempo antes pela neta.

Urge fazer justiça para pacificar as feridas da guerra cuja violência foi exercida dos dois lados, e que os vencedores prosseguiram impiedosamente, no poder.

Comentários

e-pá! disse…
Para além da reposição da memória histórica - verídica e rigorosa - sobre a guerra civil, feita (escrita) não exclusivamente pelos vencedores, mas de acordo com a verdade (histórica), bem como do arrasador e sistemático massacre de democratas ibéricos liminarmente fuzilados no rescaldo pelos esbirros do movimento falangista, existem na designada 'Espanha' muitos assuntos por resolver e muitas feridas por sarar.

A 'questão do Vale dos Caídos' será a mais pertinente, a mais imediata, porque se trata de uma ofensiva exibição antidemocrática e lesiva da dignidade dos povos que habitam o 'espaço espanhol', mas não será a única, nem talvez a mais importante.

O pós-franquismo, encarado como uma etapa de transição democrática, deveria ter passado pela reposição da República, interrompida desde 1939, quando a sedição franquista pelas armas e pelo derramamento de sangue de milhões de espanhóis se apossou do poder e o exerceu ditatorialmente durante 36 anos.

No imediato, isto é, na sequência do desaparecimento físico do caudilho, compreende-se que tenha havido contenção e cedências na 'normalização democrática', de que resultou o regime constitucional acordado em 1978.

Hoje, 40 anos depois do acordo constitucional que foi possível obter em 1978, existem (outros) problemas mais profundos e fraturantes que ultrapassam o ultraje do 'Vale dos Caídos'.

A imposição da família Bourbon aos designados 'espanhóis' (segregando os catalães, aos bascos, aos andaluzes , aos galegos, etc.), preparada metodicamente durante a ditadura falangista e levada a cabo pelo franquismo é uma autêntica aberração (democrática) e poderá ser a causa remota de alguns dos graves problemas que assolam a dita 'Espanha'.

Sendo assim a questão do 'Vale dos Caídos' é um epifenómeno do atual regime político espanhol.
A 'causa das coisas' será mais profunda.

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