O fim da obrigatoriedade de reforma aos 70 anos e a paz dos cemitérios…
O eventual fim da reforma obrigatória aos 70 anos para os funcionários públicos link acarreta no seu bojo inúmeros problemas associados.
Em primeiro lugar, esta medida parece dirigir-se a um nicho ultraminoritário de funcionários públicos. Na verdade a maioria dos funcionários públicos conta os dias que lhe faltam para a reforma (que em 2019 será aos 66 anos e 5 meses link) e na maioria dos casos nas vésperas da aposentação está a meter os papéis. Das aposentações relativas a funcionários públicos, em 2017, só 3,1% (387 utentes da CGA) link, o fizeram aos 70 anos.
Mas para além dos aspectos quantitativos interessaria saber se esta escassa percentagem de reformados (chamemos-lhes assim por comodidade de designação) que atingem o atual limite de idade que a lei em vigor impõe corresponde – ou não – a cargos da função pública, isto é, a funções dirigentes de topo (ou mesmo intermédias). E se acaso se verificarem que os ´prolongadores do tempo de trabalho’ pertençam a esta categoria julgamos o que se está a fazer – sem tirar nem por – é legislar para alguns casos particulares e tentar eternizar os titulares de diretivos nas coutadas conquistadas (por suposto por mérito), tornando-os vitalícios.
Existirão várias questões subjacentes nesta nova pretensão legislativa mas não devemos menosprezar as conceções economicistas que pretende repensar das situações presentes, não existentes em 1929 (link) e, tentar prolongar ad libidum o tempo de trabalho. É curioso revisitar o decreto que o regime salazarista promulgou – este diploma considerava que a persistência em funções de serventuários ( os funcionários públicos eram assim designados) para além de certo limite de idade (no caso vertente 70 anos) - traria como consequência alguns malefícios, tais como: “espírito de iniciativa desparece” para “ceder lugar à rotina”.
Argumenta-se que hoje a esperança de vida é muito mais longa do que em 1929. Mas esconde-se que a legislação que introduziu a medida centra-se no rejuvenescimento da função pública e se é verdade que no aspeto físico-orgânico as pessoas chegam aos 70 anos com melhores condições das de antanho não haverá tanta certeza que, como os ritmos atuais de vida, o desgaste psicológico não seja mais intenso, e logo, mais deletério das capacidades individuais (nomeadamente de liderança).
Mais o dec. 16:563 de 5 de Março 1929, sublinha um princípio que, muito embora tenha a sua génese no fascismo, consagra, e continua aplicável perante a excecionalidade de alguns trabalhadores da função pública - uma substancial minoria - que se reformam aos 70 anos, e pretendiam 'continuar no ativo', vem relembrar uma regra jurídico legislativa aceite desde os velhos princípios filosóficos de Kant: “não é para a excepção mas para a normal que deve estabelecer-se um regime de Direito”.
Se existe vontade de revisitar uma coeva legislação – com a agravante de estar ligada ao Estado Novo – introduzam-se então disposições normativas como, por exemplo, acabar com discriminações ligadas a ‘estatutos profissionais’ que gravitam na órbita de ‘grupos especiais’. Isto é, vamos passar a falar somente de reformas, tout court, deixando cair pedantices como aposentação, jubilação ou passagem à reserva (para os militares).
Por outro lado, a persistência em funções para além dos 70 anos deve ser ’aliviada’ da possibilidade do exercício de funções diretivas, de coordenação, de supervisão ou superintendência para que os interesses individuais ou particulares fiquem expostos de forma transparente. Isto é, a ‘vontade de continuar a trabalhar’ não se deve confundir com exercícios de poder ou com perpetuações ad eternum nos cargos.
Os personagens mais mediáticos que, no meio deste assunto, saltaram a terreiro têm a ver com vultos na área da Medicina (Prof. Manuel Antunes, Prof. Gentil Martins, Prof. Daniel Sampaio, Dr. Eduardo Barroso, entre outros) e, passe uma expressão boçal, tem um certo odor a um hipocrático baronato (pouco compatível com uma postura republicana).
Por outro lado, está por demonstrar que esta medida venha a conferir maior sustentabilidade aos sistemas de aposentações. No presente, as aposentações ou jubilações aos 70 anos não têm significado estatístico mesmo considerando que o aumento da esperança de vida trouxe um acréscimo do tempo de pagamento das reformas e pensões (neste momento a aproximar-se da média dos 20 anos). O problema não está na idade da reforma mas na inversão da pirâmide demográfica pelo que a solução da procura de sustentabilidade não passará, também, por aí.
Uma questão que tem relevância – e foi expressa pelo Professor Daniel Sampaio - em relação ao carácter abrupto da aposentação merece ser considerada. Na verdade, a persecução nas funções até ao limite, i. e., à idade obrigatória da reforma, poderá acontecer com uma violenta e abrupta alteração da vida quotidiana. Seria talvez conveniente um período de pré-reforma em que o trabalhador da função pública fosse paulatinamente substituído das responsabilidades diretivas mantendo, no entanto, todas as prerrogativas básicas do grau de carreira obtido. Na prática ao atingir os 66 anos e alguns meses (idade normal da aposentação sem penalizações) o funcionário deve ser - a partir dessa data - impreterivelmente substituído nas funções diretivas ou de coordenação que desempenhe nos serviços públicos podendo continuar ao serviço com um horário progressivamente reduzido – sem quaisquer alterações na categoria profissional e no estatuto remuneratório.
Para além do contributo profissional e transmissor de experiência deve o funcionário em pré-reforma ter o encargo de proporcional à geração vindoura um tempo de sobreposição desempenhando funções de assessoria ou de consultoria, garantindo assim a transição geracional com a renovação de quadros, de funções e, em última instância, de objetivos.
Mas existem outras questões que - dado não ser ainda público o conteúdo da proposta legislativa na forja - devem ser desde já levantadas. Por exemplo: será de algum modo estipulada uma idade máxima (limite) ou ficará ao critério do ‘interessado’ ou, então, dependente de decisão de uma junta médica de incapacidade.
Passaremos das reformas obrigatórias aos 70 anos para outro género, isto é, as aposentações compulsivas após declaração de incapacidade, na sequência de exames periódicos um pouco como na renovação das licenças de condução?
A quem estará cometida a competência para solicitar a avaliação de capacidade do funcionário publico que queira persistir em funções?
Passaremos das reformas obrigatórias aos 70 anos para outro género, isto é, as aposentações compulsivas após declaração de incapacidade, na sequência de exames periódicos um pouco como na renovação das licenças de condução?
A quem estará cometida a competência para solicitar a avaliação de capacidade do funcionário publico que queira persistir em funções?
O entusiasmo do CDS com esta medida é suspeito. Da mesma maneira que em Janeiro de 2014 o seu líder Paulo Portas apareceu em público a falar de um ‘Cisma Grisalho’ link, a traçar uma ‘linha vermelha’ ao seu companheiro de Governo para, entretanto, subscrever um corte das pensões da Caixa Geral de Aposentações da ordem dos 10%, em nome da convergência dos sistemas públicos e privados. Hoje, pelos mesmos motivos 'convergentes', poderá o CDS estar a derivar para a defesa de um 'ciclo de trabalho infernal' cujos remotos contornos são um esgar de velhas 'conceções senhoriais'.
A convergência público-privada é - mais uma vez - a razão que aparece reinvocada para mexer na reforma obrigatória dos funcionários públicos aos 70 anos. Do mesmo modo que foi um 'cavalo de batalha' da Direita no Governo de Passos/Portas tendo servido para espoliar os reformados (todos!). No dia em que essa ‘convergência’ se faça noutro sentido, i. e., a aproximação do sector privado ao público, nivelando a aproximação pelo patamar mais alto, começarei a ponderar neste argumento sem, contudo, o adotar acriticamente.
Na realidade, esta questão da alteração da reforma aos 70 anos levanta duas considerações marginais. O facto de os trabalhadores da função pública chegarem hoje aos 70 anos com melhores condições físicas do que em 1929 é motivo de satisfação já que permitirá – em princípio – gozar uma reforma mais ativa (atualmente na ‘berra’ sob a denominação de envelhecimento ativo) e mais saudável, um 'prémio' para os longos anos carreira pública, logo de serviço público, de que são merecedores e credores. Tal circunstância per si consubstancia um avanço social e nunca um imobilismo (retrocesso) anacrónico.
Depois, e para terminar esta lengalenga, o prolongamento da actividade laboral para além dos 70 anos, nomeadamente, conservando funções dirigentes, trouxe-me à memória uma frase de Georges Clemenceau (por sinal um médico que faleceu no ano da promulgação do decreto da reforma aos 70 anos): “os cemitérios estão cheios de pessoas insubstituíveis”…
Comentários
Há lucidez e coerência.
Obrigada
Aparentemente esta "rapaziada" acima mencionada não fez verdadeiramente o seu trabalho nos Hospitais PÚBLICOS (que nós pagamos). Se o tivessem feito teriam previsto a sua saída ao longos dos anos e deixariam não sementes de árvores, mas sim um bosque de árvores feitas e prontas a continuar o trabalho. Assim, se continuam imprescindíveis aos 70 anos não foram assim tão "bons"!! Continuam a prestar mau serviço ao fazerem força para abrir porta a "reizinhos".
Nota: seria engraçado ver alguns "imprescindíveis" a correr atrás de um camião amarelo durante as madrugadas no meu bairro...