Jurisprudência perturbadora

É difícil conciliar a defesa das liberdades individuais, que perfilho, com limitações que considero irrevogáveis. Quem consiga ser coerente e justo, ao mesmo tempo, que atire a primeira pedra.

Aceito, como sucede na Alemanha, que a liberdade de expressão não se compadeça com o negacionismo em relação ao holocausto. Aceito, e exijo, a obrigatoriedade do ensino, das vacinas, do respeito da lei e da submissão aos valores civilizacionais.

Serve o preâmbulo para manifestar perplexidade perante uma sentença recente, referida na comunicação social, e logo esquecida, como tema que não merecesse ser escrutinado pelos cidadãos.

Uma juíza entendeu dispensar da frequência escolar uma menor que considerava ter as competências escolares básicas para as suas necessidades, e “não demonstrar motivação para frequentar a escola e ajudar a mãe nas tarefas domésticas”, aliada ao facto de ser “de etnia cigana e de cumprir com as suas tradições” o que a levava “a considerar que não necessita de frequentar a escola”. Entendeu ainda a juíza que o desenvolvimento dos jovens para uma vida digna passa, por vezes, “por caminhos diversos e igualmente recompensadores que não simplesmente a frequência da escolaridade até à maioridade”.

Esta sentença trouxe-me à memória um miúdo cigano, que foi meu aluno, inteligente e simpático, que procurei diversas vezes no bairro da Musgueira, para convencer os pais a deixá-lo frequentar a escola onde era um bom aluno, apesar do absentismo frequente.

Consegui que fosse mais algumas vezes, mas acabou por desaparecer, ele e os pais. Foi um sentimento de frustração que me ficou daquele miúdo encantador que podia e devia ter prosseguido os estudos, quando era apenas obrigatória a 4.ª classe, que não concluiu.

No caso desta menina, acredito que a juíza não podia dar-lhe a motivação, que a família desencorajava, nem garantir a assiduidade sem coação policial, mas aceitar a tradição como justificação e fazer jurisprudência legitimando o comunitarismo contra a integração cidadã, parece-me um precedente particularmente grave.

Uma sentença diferente teria provavelmente efeitos iguais para a jovem, mas legitimar a desigualdade de oportunidades com base na tradição, ofende a igualdade dos cidadãos perante a lei e privilegia os preconceitos. Não há, aliás, uma única iniquidade, desde o esclavagismo à desigualdade de sexo, do racismo à xenofobia, da homofobia à misoginia, da tortura à pena de morte, em que não pudesse ser alegada a tradição.

Seria preferível a desobediência, sempre passível de repressão, do que a legitimação de uma opção que reproduz o ciclo de pobreza, marginalidade e submissão da mulher.

A sentença em causa é jurisprudência que urge ser revogada por um tribunal superior. A igualdade dos cidadãos perante a lei é essencial para a igualdade de oportunidades que o Estado deve defender.

Ponte Europa / Sorumbático

Comentários

António disse…
Inteiramente de acordo.
Mas há outro argumento que evidencia a ilegalidade desse fundamento da decisão:
A tradição ou os costumes não fazem lei em Portugal, no sentido de que não são fonte de direitos e obrigações e de que não podem em caso algum contrariar lei expressa preexistente (arts. 1º e 3º do Código Civil. Pode parecer a leigos argumento irrisório, mas tratando-se de um juiz é gravíssimo!!!
Manuel Galvão disse…
A juíza decidiu mal. Porém, lá na escola, os professores, os administrativos, os pais dos outros alunos, enfim TODOS agradecem !!!

A juíza podia muito bem ter evitado proferir uma sentença claramente inconstitucional; bastava que condenasse os pais a aderir a opção legal de ensino em casa...

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