SNS: Montenegro e a persistente estratégia da Direita...

O his master voice do passismo (na reserva) – Luís Montenegro - assina esta semana um artigo de opinião política no semanário Expresso sobre o SNS tendo como título “Base da política para a Saúde” que é um verdadeiro ato de prestigiação. Embrenha-se numa leitura obtusa do texto constitucional e a partir dá começa uma cavalgada liberalizante sem freio nos dentes e, o pior, sem tino.
Escreve o articulista: “A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra não apenas o direito á protecção da saúde e o dever de a defender e promover como a sua concretização através de um Serviço Nacional de Saúde e da articulação deste com formas empresariais e privadas de medicina” (Expresso, 01.09.2018, pág. 33).
 
Esta leitura constitucional deverá ser considerada um incontido e secreto desejo de proceder a uma obtusa revisão do texto fundamental e ajustá-lo às convicções pessoais e partidárias ou, então, será a mais estapafúrdia versão do articulado que está estampado na CRP.
 
A leitura enviesada do Artº. 64º da CRP levou a que uma função de complementaridade aí inscrita, sob um texto que consagra taxativamente o ‘universalismo’ do SNS (“Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde” link), onde admite (sob apertado controlo)  uma ajuda fiscalizada e disciplinada de ‘formas empresariais e privadas’, eventualmente colaborantes (entenda-se em regime supletivo), a fim de assegurar padrões de eficiência e qualidade aos utentes.
 
Luís Montenegro, esconde, na sua análise, o carácter universal e geral taxativamente expresso no item 2. a) do citado artigo 64º da CRP para entrar numa desenfreada especulação acerca de um visão ‘personalista’ do texto constitucional (muito entrosada com a democracia cristã do CDS nos seus primeiros tempos hoje diluída num populismo de direita). Certo que a CRP consagra as liberdades individuais mas misturar esses direitos com a questão de prestações públicas do Estado é o mesmo que confundir um guarda-chuva com a feira de Espinho (terra do articulista).
 
Aliás, a evocação de questões constitucionais por parte de Luís Montenegro é um puro exercício de pouca-vergonha. A ‘maioria de direita’ que nos governou de 2011 a 2015 e de que o articulista foi um lídimo colaborador parlamentar (líder de bancada) terá sido, de longe, aquela que, no período democrático do pós 25 de Abril, mais inconstitucionalidades suscitou link.
Tal facto, per si, diz muito sobre a capacidade interpretativa do texto constitucional e confirma o modo como a direita neoliberal é capaz de torturar os preceitos aí inscritos face a questões ideológicas. Perante estes factos a Direita vem frequentemente a terreiro bradar contra um contexto ideológico (adverso) de que acusa a CRP. A Constituição tem sido um empecilho para a consolidação das políticas de Direita e quando vemos um seu prestimoso representante a invocar devemos pôr-nos de pé atrás.
 
Durante os ‘anos de chumbo do passismo’ foi sublinhado que os cortes cegos na saúde – entenda-se o desinvestimento no SNS – não afetavam a eficiência e qualidade do sistema. Na verdade, como sabemos que é impossível fazer omeletes sem ovos o que se projetava então – e hoje se está enviesadamente a propor - é diferir os efeitos no tempo dessa famigerada estratégia neoliberal (‘menos Estado, melhor Estado’) e quem vier a seguir que feche a porta e apague a luz.
Mas não foi só isso. Durante esse tempo a dita ‘iniciativa privada’ foi ganhando terreno e procedendo a uma implantação territorial segundo a estratégia habitual do lucro fácil, imediato e alargado, longe de preocupações de equidade com a acessibilidade e a universalidade da cobertura nacional. Quando revisitamos os anos negros de austeridade (2011, p. exemplo) verificamos dramáticos cortes na saúde orçamentalmente quantificáveis (810 M€ link ) mas iludidos nas suas consequências a médio e longo prazo.
 
A teoria de que as empresas privadas e mesmo o sector social prestam um ‘serviço público’ pode até ter pontualmente alguma adesão com a realidade. Mas colocá-las numa situação concorrencial, muito para além da complementaridade, é atropelar e alienar o SNS das suas competências e finalidades, torpedeando as capacidades prestativas e a qualidade das respostas sociais esperadas.
 
A Lei de Bases da Saúde - neste momento em revisão - deverá estar condicionada por 3 preocupações centrais: equidade, universalidade e acessibilidade. Contornar estes pilares supondo que o sector privado e social filantropicamente os complementará é alienar-se dos fins de um serviço público essencial aos cidadãos.
Centrar, como parece ser o intuito da Comissão presidida por Maria de Belém Roseiro, na questão das PPP, é um pouco tomar a árvore pela floresta.
Na verdade, o mais amplo estudo comparativo entre Hospitais pertencentes ao sector público administrativo e os H PPP, elaborado pela ERS, não evidenciou vantagens significativas de um modelo sobre o outro. link.
Portanto, o cerne da questão, isto é, o básico (o que de informar uma Lei de Bases) não reside aí. Na verdade - e para entrar numa lógica economicista - não é tolerável que os encargos com as PPP cresçam anualmente e se continue a ‘esmagar’ as dotações orçamentais para o SNS.
 
Os ‘anos de chumbo do passismo’ desnataram o SNS, fragilizando-o (subalternizando-o?) perante uma iniciativa privada e social galopante e mediaticamente enfatizada. Poucos portugueses terão dúvidas acerca disto.
 
É premente interrogar-nos como a Esquerda consciente destes apertos – e tendo denunciado em devido tempo estas atrocidades - não teve o cuidado de em 2016, 2017 e 2018 corrigir esta estratégia política e orçamental. Nestes anos de exercício do XXI Governo Constitucional – do PS apoiado parlamentarmente pela Esquerda - verificamos que, para além da reposição de rendimentos e direitos dos trabalhadores e assalariados, estava subjacente, simultaneamente, a imperiosa necessidade de cuidar da reanimação dos serviços e instituições públicas debilitados pelo ‘passismo’. Nada disso foi feito e adotou-se a estratégia do ‘cavalo inglês’ (que definhou quando estava a habituar-se a sobreviver sem ração…).
 
A displicência (não será só ‘isso’) em desenvolver – de imediato e com urgência - de uma política de investimento público ousada e adequada, integrável na reposição de direitos e rendimentos, foi lamentavelmente condicionada por uma rigidez de resultados (imediatistas) no deficit orçamental. Os mais recentes acontecimentos (link) têm de ter uma interpretação política e, mais importante, consequências para o próximo OE (2019).
Ninguém defende investimentos ao desbarato sendo, portanto, fundamental a atualização da Lei de Bases da política para a Saúde em curso.
 
O artigo de Luís Montenegro mostra, à saciedade, que para manter um Estado Social digno desse nome não podemos contar com o contributo da Direita apostada em esmifrar o SNS através de uma política concorrencial (e não só complementar) entre o sector público, privado e social.
A ‘pressão da Direita’ só tem uma resposta correta e plausível: o reforço do investimento sector público da saúde. Tudo o resto, seja de modo direto ou ardiloso, é contemporizar com a paulatina destruição do SNS. Uma hipotética convergência sobre este incontornável pilar social entre a Esquerda e o bloco de Direita (PSD e CDS) é uma pura miragem. Serve, acima de tudo, para adornar a retórica política, encanar a perna à rã e alimentar o ‘discurso presidencial’ à volta de fantasiosos consensos, mas não é realista, nem contempla o interesse nacional.
 
De certo modo, estamos como em 1979 quando o PSD e CDS votaram ‘encostados’ contra Lei 56/79 (link) que criou o SNS. As ‘direitas encostadas’ (para usar a terminologia Cristas) não mudaram de propósitos, mas sim de rostos mantendo-se a ‘carga ideológica’ de antanho. É isso que, no essencial, o artigo de Luís Montenegro revela: uma vontade indómita de privatizar o SNS a retalho ou, então, em suaves e continuadas parcerias mistas (público/privadas).

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