Reflexões pessoais sobre Lula, a democracia e o poder judicial

Não existe democracia sem sufrágio, universal e secreto, e independência dos Tribunais. São condições necessárias, não necessariamente suficientes, para a legitimar, mas, como acontece com outros instrumentos democráticos, não estão livres de perversões. Sabe-se como é difícil evitar o caciquismo eleitoral ou o corporativismo judicial.

Um instrumento de inegável democraticidade, e facilmente manipulável, é o referendo, que em Portugal aprovou a Constituição de 1933 e, no Reino Unido, o Brexit. Recorde-se que os Referendos portugueses, em democracia, nunca tiveram participação bastante que exigisse o cumprimento. Apesar das críticas de quem pretende impedir ou reverter as decisões parlamentares pela via referendária, prefiro a democracia representativa.

O poder judicial não está isento do escrutínio popular nem das instâncias internacionais, e facilmente se considera politizado quando a jurisprudência desagrada a quem a avalia, mas esperar a neutralidade dos magistrados, como se não tivessem simpatias políticas, opções de classe, relações sociais, ambições políticas e sedução mediática, é tão grave como confiar no seu controlo através do poder executivo.

O único poder do Estado de direito cuja legitimidade é alheia ao sufrágio, oscila entre a neutralidade política, considerada garantida pela imparcialidade e isenção dos juízes, sempre favorável aos poderes instituídos, e a intervenção, que impõe os seus métodos, valores e autoridade nos assuntos da governação e no seu julgamento, com a subversão democrática. É difícil resolver este dilema e evitar a politização da Justiça.
 
Sabemos que as ditaduras controlam o poder judicial, mas menosprezamos o peso deste na instauração de ditaduras ou na destruição de democracias. Recordo os juízes italianos da Operação Mãos Limpas, cuja coragem e honestidade me seduziram, e cujo sacrifício da própria vida me comoveu, no combate à corrupção, mas não esqueço que foram eles, involuntariamente, que abriram caminho, em 1994, à ascensão apoteótica de Berlusconi.

A Operação Lava Jato, com o exótico sistema judicial brasileiro e as tropelias, a que foi alheia a magistratura italiana, é um ato de higiene manchado pela aparente conspiração de juízes com partidos políticos na destituição da PR Dilma.

A prisão de Lula da Silva, que acabou na rejeição judicial da sua auspiciosa candidatura, abriu caminho à eventual eleição do cruel fascista Bolsonaro, e deixa a pairar a suspeita nos juízes brasileiros e o cheiro a conspiração.

O poder político não pode ficar tolhido pelos casos de políticos arguidos pela Justiça e, muito menos, ficar refém dos magistrados e abúlico nas decisões que lhe competem.

Comentários

e-pá! disse…
Por cá, em terras e sistemas políticos algo diferentes e distantes do Brasil, a democracia e o poder judicial também estão à beira de um pouco recomendável confronto.
A Oposição - desde o CDS ao PSD - pretende usurpar competências e interferir diretamente na nomeação do(a) futuro(a) titular da PRG.
Ninguém contesta o direito de qualquer português, associação cívica ou partido político comentar uma putativa nomeação (depois de efetuada) mas tentar antecipadamente condicionar essa nomeação, indicando quem deve (ou não) ocupar o lugar de PGR, não passa de uma inacreditável promiscuidade entre o sistema democrático (criador e garantia do estatuto da Oposição) e o sistema judicial.
Quem tem de garantir a independência do poder judicial é a lei constitucional e não questões circunstanciais nem análises conjunturais avulsas.
Existe necessidade, tanto no Brasil como cá, de ter uma interpretação fiel, rigorosa e transparente da Lei (nomeadamente da fundamental) e, desse modo, preservar - com equilíbrio - a separação de poderes.
O 'golpe do impeachment de Dilma' mostrou essa necessidade mas por cá está a ser criada uma 'tempestade paroquial' que está a confrontar o sistema democrático e a independência do poder judicial: a de garantir a liberdade e competências constitucionais relativas à escolha do(a) futuro(a) ocupante do palácio à rua da Escola Politécnica...
Alguém disse - teoria das 'Broken Windows' - que a melhor maneira de precaver os grandes crimes seria combater os pequenos delitos.
Manuel Galvão disse…
Nunca gostei de Cavaco Silva. Nem como cidadão nem como presidente.
Porém, no dia em que ouvi um alto responsável do poder político português referir-se a ele como "o Sr. Silva", sem consequências, percebi que estávamos perdidos...

O Poder está na ponta das armas. Portugal não tem armas, logo, o Poder caiu na rua.

"não ter armas" aqui significa, claro está, ter uma hierarquia armada, estruturada e disciplinada capaz de pôr nos eixos palhaços como aquele que referi; o do Sr. Silva...

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