A insuportável ‘medicalização’ da vida…

Várias circunstâncias da vida quotidiana sejam orgânicas, sociais ou de relação são hoje questões abusivamente ‘medicalizadas’.

A ordem natural dos ‘acontecimentos biológicos’, inerentes à condição humana, como é, por exemplo, o fatalismo da morte, são, hoje, consideradas um trauma profundo a necessitar de apoio médico, medicamentoso e psicológico.

Outros exemplos:
O fim de uma relação afetiva como seja, por exemplo, o divórcio, é, no presente, mais um trauma psicológico que acarreta um incremento no consumo de tranquilizantes, consultas de apoio psicológico, etc. Questões laborais que sempre existiram ou, pior, foram, no passado, mais agudas, traumatizantes e carregadas de maiores injustiças, entram no rol dos rotineiros episódios de ‘burn out’ e carecem de tratamento médico e social.
A puberdade – etapa transformadora da viagem biológica – perdeu a sua particularidade e passou a ser um ‘repositório de problemas’ desde a acne às instabilidades emocionais e comportamentais.
A menopausa (passemos ao lado da andropausa) é vista como uma anormalidade biológica e passou a ser uma ‘doença’ com um cortejo de manifestações que vão desde os banais ‘afrontamentos’ à osteoporose, sem falar das modificações da libido que, no conjunto, vão influenciar a vida das 'balzaquianas', muitas vezes destruindo-as.

Existe um sem número de situações idênticas representativas do normal ‘correr da vida’ e a inexorável marcha do ‘relógio biológico’ que hoje tem como consequência o ‘mortificar da vida’ e fazer disparar o consumo de cuidados de saúde.

Interessaria saber para além de uma inusitada ‘sensação de risco’ que contamina cada vez mais os cidadãos, como os cuidados de saúde respondem a estas situações em termos médicos mas, também, no campo social, político, económico e até antropológico. Esta ‘peregrinação’ levar-nos-ia longe.

Igualmente, o desenvolvimento biotecnológico fez disparar o consumo de cuidados, atolando a procura e constrangendo a resposta nos serviços de saúde, isto é, a realização em catadupa de exames complementares (muitas vezes sem qualquer justificação clínica) e, finalmente, perceber como os laboratórios farmacêuticos poderão estar a explorar economicamente situações de medo e ansiedade artificialmente empoladas (vendendo profusamente fármacos a populações saudáveis).

Está criado um circulo vicioso – alimentado pelo ‘mercado da saúde’, pela comunicação social e também pelas redes sociais – que começa nos diagnósticos avulsos, pouco fidedignos, muitas vezes apressados e frequentemente mal interpretados, nas exaustivas e discricionárias baterias de exames complementares (à procura de Godot) de que os check-ups são o paradigma, tornando-se subsidiários de um intervencionismo terapêutico (biológico, médico ou cirúrgico) muitas vezes supérfluo, obsessivo e demasiado alargado no tempo. manifestando-se como um incontrolável fator gerador de iatrogenias e dependências, e, finalmente, mantendo uma permanente e suspensa dúvida que alimenta infindáveis follow-ups,  sem ‘resolver’ a questão fundamental, isto é, o temor pela doença que se instalou.

Esta ‘roda viva’ é uma autêntica pescadinha de rabo na boca e a exploração dos receios, medos ancestrais associada ao horror ao sofrimento, tornou-se um objetivo para não dizer um negócio. A vida é um rol de desafios que tentamos ignorar e comtemplam múltiplos parâmetros e fases vitais: crescimento, envelhecimento, dependências, acidentes, alegrias, violências, desigualdades crescentes, etc..

Há, todavia, duas circunstâncias comuns que devem estar presentes como a inexorável ‘lei da vida’ e muitas vezes 'esquecemos': todos nascemos iguais (pelo menos depois da Revolução Francesa) e todos vamos igualmente morrer.

Uma incalculável dose de fatalismo condiciona-nos e sitia-nos fundamenta-se, muitas vezes, em manipulações estatísticas e estudos enviesados que levam muitos de nós a pensar que o simples facto de viver é extremamente prejudicial para a saúde.

No passado, nomeadamente nos meios rurais, era comum dizer que fulano(a) ou sicrano(a) tinha morrido de ‘velhice’. Hoje, não é assim. A morte tornou-se intolerável e acidental, muitas vezes travestida como sendo ‘negligência médica’, à boleia de um subliminar conceito de eternidade que as religiões, desde tempos imemoriais, se apressaram a explorar.

A eternidade é um conceito filosófico que especula com o tempo (de nascer, de viver e de morrer). A sua integração na vivência transcende a própria vida, daí o seu permanente conflito humano mas, entretanto, numa atitude quixotesca, esgrimindo contra moinhos de vento, vamos ‘medicalizando o quotidiano’, isto é, iludindo a realidade.

Comentários

cassandra disse…
Sublinho a lucidez deste texto no qual me revejo.
acvmoz disse…
Inteiramente de acordo com o texto. E podemos especular quanto da "medicalização" excessiva das nossas vidas se transformou num grande negócio - ou, como se diz agora, numa oportunidade.

Alvaro Vaz

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