Não há fumo sem fogo…

A sociedade portuguesa é culturalmente multifacetada, basicamente tolerante e tem hábitos diversificados mas esta heterogeneidade muitas vezes é alvo dos políticos que anseiam por regulamentações avulsas, algumas com tiques fundamentalistas. Abrigada no imenso chapéu-de-chuva que engloba o amplo conceito de ‘vidas saudáveis’ ou girando à volta de obsessões ecológicas sob o espectro do activismo de um planeta sustentável, têm surgido, aqui e acolá, medidas regulamentares, no mínimo, algo controversas, para não dizer caricatas.

Uma delas será a que foi proposta pelo PAN com vista a proibir o atirar de beatas para o chão e que foi aprovado na generalidade na AR link.

Em primeiro lugar, convêm afirmar que as chamadas ‘beatas’ são resíduos finais resultantes do acto de fumar e, olhando por este prisma, um lixo que, devido à sua abundância e disseminação, é intensamente 'conspurcador' do ambiente natural. 
A ‘beata’ é assim uma consequência directa do acto de fumar e um sobejo terminal que efectivamente polui. Existem, desde há séculos, recipientes de recolha específicos nos ambientes domésticos mas no espaço público a regra tem sido a sua deposição ‘à balda’, após espesinhamento ou, então, lançamentos a curta distância. 
Não se trata de uma situação pontual mas de um ‘hábito’ que envolve mais de 2 milhões de portugueses e cuja reversão – necessária, sem dúvida - envolve outros aspectos para além do proibir e multar.

A medida proposta pelo PAN poderá (deverá) ser entendida como uma extensão da proibição de fumar aos espaços exteriores uma vez que já se encontra fortemente condicionada nos espaços fechados e intramuros. A não ser que os fumadores andem com cinzeiros portáteis a tiracolo a inexistência de recipientes próprios para atirar os cigarros consumidos traduz a sub-reptícia intenção de restringir o fumar no exterior. Trata-se de uma espécie de ‘cerco ao fumador’ que acresce a uma já elevação taxação sobre os produtos tabaqueiros e, acrescente-se, a uma frágil e pouco eficiente luta antitabágica.

São inegáveis os malefícios do tabaco e ninguém pode (ou deve) ignorá-los ou desvalorizá-los. Todavia, diariamente, surgem à volta dos hábitos tabágicos novos malefícios a acrescentar aos descritos anteriormente que sugerem a presença de uma histérica catadupa onde se insere uma cascata de avisos e proibições que parecem colidir com as liberdades individuais. Estamos a caminhar para uma situação limite. 

Se tudo for tão negro como está a ser pintado (não só sobre o tabaco mas sobre os ‘modos de vida’), se o cerco continuar a apertar-se só resta colocar uma interrogação: por que razão não se proíbe liminarmente o fumar?

São invocadas habitualmente duas ordens de razões. Uma, porque do tabaco o Estado recolhe chorudas taxas e a outra porque a indústria tabaqueira ao reunir poderosos ‘corporate groups’ tornou-se num poderosíssimo lobby. Interessaria examinar estas duas vertentes. As dramáticas consequências do tabagismo poderão estar a esvair indirectamente as receitas recolhidas em taxas já que o tratamento do cancro do pulmão (uma das mais visíveis consequências do fumar) está a ser colonizado por um conjunto de novos fármacos introduzidos no mercado a preços proibitivos (para os cidadãos e qualquer sistema de saúde), então estaremos a transferir essas receitas recolhidas pelo Estado para a indústria farmacêutica. Deste modo, criam-se ‘sistemas em cascata’ onde as receitas de taxas e impostos, punitivas para os consumidores, por se considerar um procedimento insalubre e poluente, são direccionadas para um sector industrial (neste caso o farmacêutico).
Por outro lado, o lobbyng internacional da indústria tabaqueira levou a que as evidências científicas sobre os malefícios do tabagismo fossem escondidas do grande público, nomeadamente, nos processos judiciais indemnizatórios que ocorreram em todo o Mundo, com especial relevância nos EUA. 

Uma ‘cortina de fumo’ sobre as consequências do tabagismo foi, durante muitos anos, alimentada pela indústria para se eximir de condenações mas também para continuar a incrementar a produção, desenvolver esquemas de dependências e, no final da cadeia, prosseguir a consolidação de majestáticos lucros.
Do que atrás ficou dito, conclui-se que uma eventual proibição tabágica não é, por via legislativa (por decreto), um bom caminho. Acabaria por abrir uma nova etapa de certo modo paralela com o consumo de drogas, com uma desenfreada especulação dos preços e o incremento da produção clandestina. 

A abordagem lateral que o PAN vem promovendo sobre o tabagismo, criminalizando o atirar de ‘beatas’ para o chão, aparentemente uma medida higiénica e de preservação do ambiente, acarreta todos estes riscos.  Digo ‘abordagem lateral’ porque desconheço quais as posições do PAN sobre, por exemplo, o SNS, onde se deverá centrar a luta preventiva anti-tabágica.

Por fim, convém referir a desproporcionalidade das coimas propostas, na prática, aplicáveis aos eventuais prevaricadores. Um exemplo: A empresa Celtejo que foi objecto de várias investigações por poluição do rio Tejo viu as contra-ordenações daí decorrentes acabarem numa ‘repreensão escrita’ link. No caso de arremesso de beatas para o chão as coimas previstas na proposta do PAN – recentemente aprovadas na generalidade – tem valores que vão ser definidos pelas autarquias mas poderão atingir proporções exageradas (inadequadas), entre 200 a 4 000 € (o pudor republicano acabou por fixar no texto final o tecto máximo em 250€ link), num País onde o salário mínimo nacional, só muito recentemente, chegou aos 600€!.

Nada disto se insere numa luta antitabágica consequente onde a repressão – na ausência da proibição da produção e venda – deverá ser sempre o fim da linha. Cerca de 20% a 25% dos portugueses e portuguesas são fumadores. É uma percentagem muito alta e esta situação deve ser encarada como um problema de saúde pública. O balanço das campanhas anti tabágicas está longe do sucesso como demonstra um estudo de alguns anos link
Mas o mais importante é que só um ínfimo número deste grupo de cerca de 2 milhões de fumadores contou com apoio médico para combater esta dependência e a comparticipação medicamentosa está longe de ser satisfatória. Todavia, este é outro terreno, isto é, diz respeito à consolidação do Estado Social, onde – ao contrário do que a Direita proclama – as opções ideológicas têm um papel fundamental e decisivo.

Quando muito esta nova medida legislativa (o ‘combate às beatas’) será uma nova versão de um velho problema que é muito mais amplo, isto é, o combate do atirar ‘lixo para a rua’, medida que tem contornos educacionais, passa por atitudes comportamentais (individuais e de grupo) e insere-se no perfil cívico dos cidadãos.

Entretanto, o País vai instituindo coimas a torto e a direito, num descontrolado esgar repressivo, que tem tido episódios pouco edificantes e completamente avessos à boa formação cívica.

A construção de um ‘País asséptico’ é sempre suspeita. Quando esse desiderato é baseado na repressão (seja de que tipo for) pior ainda. Vamos ver se os espaços públicos vão ser inundados de cinzeiros (quando são escassos os contentores de lixo na via pública) e se os cidadãos vão ser ‘policiados’ por cívicos agentes - não tenhamos medo de o dizer – repressivos, quando não o são no campo preventivo da segurança pública e ambiental pelas razões que conhecemos (falta de recursos humanos). 

Paralelamente à ambição por uma sociedade segura, limpa e transparente deverá existir simultaneamente o propósito de educar e a promoção do conceito de ‘bem-estar’. Será, no mínimo, polémico que medidas como esta venham a ser eficazes e, ao mesmo tempo, possam contribuir para os desejáveis equilíbrios sociais, culturais e ambientais. 
O Mundo não tem boas recordações de ‘brigadas dos costumes’, nem de obsessões por ‘limpezas’ (sejam de que natureza for). Não devemos proteger os animais e a natureza cercando as pessoas. 


Declaração de interesses: 
Sou fumador mas este desabafo não deriva dessa circunstância mas enquanto cidadão avesso a todo o tipo de regulamentações que exalem um perfume fundamentalista.

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