Crónica – Memórias da juventude

Quando em 1961, ido da Guarda, fui colocado no Bairro dos Penedos Altos, na Covilhã, logo surgiram convites habitualmente destinados aos professores.

O primeiro, com tratamento de V. Ex.ª, que me faria duvidar do destinatário, não fora a coincidência do nome, foi recusado. E os seguintes. Não me interessavam e eram pouco recomendáveis as origens.

Em abril de 1963 o Papa João XXIII tinha publicado uma encíclica destinada não só aos fregueses, mas a todos os homens de boa vontade, as mulheres não mereciam referência. Recebi o convite para um colóquio, tal como as 15 docentes daquela escola onde era eu o único homem, com alusão ao tema a discutir, a Encíclica PACEM IN TERRIS.

Dessa vez, por razões que o Diabo explicará, compareci à hora e no local que o convite, subscrito por um padre S. J., indicava. Um padre, culto e comunicativo, dissertou sobre a encíclica, em termos encomiásticos, e pôs o tema à discussão.

Retivera que o Papa pedia aos países ricos que ajudassem os países pobres e, logo que tomei a palavra, perguntei se tal pedido era ingenuidade papal ou hipocrisia, sabendo-se que os ricos só ajudariam os pobres se obtivessem vantagens.

Foi urbana a resposta do padre preletor que contestou a minha afirmação, mas a plateia foi insensível e inamistosa. Havia de me acontecer muitas outras vezes na vida.

Só não esperava ser chamado uma vez mais, por ordem do tenente Gaspar, ao comando da PSP, para me dar conselhos durante a noite, devia sofrer de insónias, e só terminar a caridosa prédica às cinco ou seis horas da madrugada com o habitual conselho, V. Ex.ª, este era o tratamento para todos os cidadãos da Oposição ao regime, está a prejudicar o seu futuro, o senhor Dr. Raposo de Moura, que muito prezo, é companhia que prejudica V. Ex.ª, tenha uma boa noite.

Não tardou que de Castelo Branco viesse um agente da Pide a ouvir o Delegado Escolar e outros professores da confiança deles, a meu respeito, pois o padre Morgadinho, irmão de um agente, comunicara que havia na Covilhã “um professor novo, atrevido, com cara de idiota, que precisa de ser vigiado”.

Já tinha sido provido como professor efetivo na Lourinhã, e desgostou-me o padre Morgadinho a chamar-me ‘novo’, já com vinte anos e a terminar o segundo ano de docência.

Aliás, a Pide vigiava-me há dois anos e o execrável governador civil da Guarda andava inquieto, comigo e com a minha mãe. O governador, Mário Bento Soares, de tanto odiar o honrado homónimo da oposição, não permitia que o tratassem por Dr. Mário Soares. Deixou cair o apelido paterno e assumiu para todos os efeitos o nome de Mário Bento.






Ponte Europa / Sorumbático

Comentários

Dulce Oliveira disse…
É bom lembrar como era a vida nesse tempo e como os cidadãos eram vigiados e "castigados" quando não agradavam ao regime. É ainda mais repugnante visto a esta distância!
Jaime Santos disse…
Li aqui atrasado um livrinho delicioso de Michel Serres, 'C'etait mieux avant!' e ele teve a sorte de ter vivido numa democracia.

Não, não era melhor dantes, e que os jovens percebam por que não o era e que não se esqueçam disso, agora que muitas vozes de Direita e de Esquerda nos querem levar de volta para os anos 50 as primeiras e para os anos 70 as segundas...

É que se o arco da História tende a dobrar-se na direcção da Justiça é preciso que os homens e as mulheres façam por isso...

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