A Bélgica, a monarquia e a hipocrisia
A Bélgica não é bem uma nação, é um Estado dividido entre Valónia
e Flandres, mais a cidade-Estado de Bruxelas, antagonizados por idioma,
religião e cultura. A monarquia é o anacronismo que finge aglutinar um espaço
cosmopolita.
Os reis são católicos por tradição e devassos por igual motivo,
mas a religião é mostrada em público e a devassidão gozada em privado. Já foram
donos de uma quinta em África, Congo Belga, uma coutada real.
O rei Balduíno terá mantido uma relação de alcova com duas rainhas,
a própria, Fabíola, e a madrasta, rainha por ser a mulher do pai, Leopoldo III.
Não terá sido um crime, mas não foi bonita ação. O que surpreendeu os belgas não
foi a devassidão do monarca, mas a intensidade da fé que o fez renunciar ao
trono entre os dias 4 e 5 de março de 1990, ao recusar assinar a lei de
despenalização do aborto na Bélgica.
Cobiçar a mulher do próximo, mesmo ao pai, não foi original,
mas promulgar a lei que legalizava a IVG, seria uma ofensa à Igreja e um pecado
que o impediria de morrer, três anos depois, confortado com todos os
sacramentos, muita liturgia e bilhete para o Céu.
Sem filhos, apesar dos esforços diversificados, o trono
passou para o seu irmão mais novo, Alberto Félix Humberto Teodoro Cristiano Eugénio
Maria, Rei dos Belgas de 1993 até sua abdicação, em 2013, em favor de seu filho
mais velho, Filipe. Os nomes dos reis parecem mais um cardápio do que a
identificação.
Católico, como é hábito, parece ter sido fiel a outra
tradição familiar, o gosto pela cama de mulheres casadas. Ainda príncipe
frequentou, com assiduidade e durante largos anos, o tálamo conjugal de uma
senhora que não era sua.
Enquanto reinou, a imunidade judicial permitiu-lhe o pleno gozo
do adultério, o pecado é facilmente perdoado com o simples alvará de pároco, sem
desfechos desagradáveis ou submissão a provas de paternidade a que um cidadão normal
é obrigado.
O problema de Albert de Saxe Cobourg surgiu com a abdicação,
em 2013, quando uma alegada filha continuou a reivindicar a paternidade e o pai
tinha perdido a unção divina que o fez rei. A Bélgica é um Estado de direito
democrático, sem medo de um ditador, como sucedeu em Espanha, onde se fez uma
lei para impedir o escrutínio dos negócios do rei que Franco impôs ao País.
A lei belga obrigou o ex-rei a submeter-se à prova do ADN,
que nos Estados de direito democrático precede o direito divino. Depois de conhecidos
os resultados do ADN, Sua Majestade, através de um comunicado do seu advogado, reconheceu
a sua filha natural, Delphine Boël, sem prejuízo da paternidade legal de há
mais de quarenta anos.
A Bélgica ganhou uma princesa, mas a monarquia perdeu o
respeito, se ainda o tinha, e as consequências só a partir deste mês se farão
sentir.
Não sendo um exclusivo da realeza, a incidência em Espanha,
Inglaterra e Bélgica é a prova de que o adultério é uma tradição monárquica
mais persistente do que os regimes.
Filha e pai - Foto AFP |
Comentários
E cabe lembrar que nessa mais monárquica das Repúblicas, a Francesa, era tradição os Presidentes acumularem amantes, lembro-me de Miterrand, Chirac, Sarkozy e Hollande (era demasiado pequeno na época para me lembrar de d'Estaing). Macron, que nutre pela esposa um amor que parece roçar a obsessão, é uma excepção, o que só abona em favor dele, note-se.
O pecado de Alberto é, quando muito, o da hipocrisia própria daqueles, não apenas os católicos, que incapazes por razões pessoais ou de Estado de assumir o fim do seu casamento, mantêm amantes às escondidas ou namoradas em público.
Os belgas, como mostra a aplicação pelos tribunais da lei comum a todos, incluindo os ex-monarcas, já cresceram para além destas escandaleiras que fariam as delícias dos tablóides britânicos.