Lamentos e mágoa

Ontem publiquei um texto sobre a mais repugnante figura histórica do século XX, em Portugal. Fui cuidadoso na gramática e no rigor histórico, sendo os juízos de valor os do homem que sou e das circunstâncias que me moldaram.

É raro agradecer os elogios, por pudor, tomando-os como mera identificação voluntária dos que partilham ideias semelhantes e têm da vida e da sociedade convergências que me agradam.

Quanto aos insultos, sou indiferente se me são dirigidos, e fico magoado quando outros são atingidos, mas o que deveras me fere é o facto de os meus textos darem origem a manifestações de ódio, afloramentos de racismo e manifestações primárias de raiva.

O exclente e arguto jornalista Carlos Fino, ao partilhar o meu texto no Faceboock, foi injuriado, e vi nos comentários pérolas como esta: ‘fui educado para matar comunistas’, de um primata com um nome sonante de uma família que deu ao fascismo cúmplices e perseguidos.

Na minha página apareceram manifestações de ódio contra os retornados das colónias e destes contra a democracia, como se uns e outros não fossem vítimas da mesma ditadura e da perfídia do ditador.

Como se pode ofender quem regressou destroçado, sem haveres, sem referências e sem a compreensão de que a autodeterminação era inevitável e, cada dia de guerra colonial a mais, um crime que se perpetuava? E como podem os que regressaram ficar indiferentes ao sofrimento de meio milhão de jovens obrigados a combater numa guerra injusta e previamente perdida, aos milhares de mortos e amputados, às dezenas de milhares que ainda hoje sangram por dentro, alguns ainda convencidos de que defendiam a Pátria?

A superioridade da democracia sobre a ditadura reside na aceitação dos antidemocratas. Essa é a sua grandeza e vulnerabilidade, e não há, para democratas, justificação para o ódio, o racismo e a intolerância, nem para a renúncia à defesa da liberdade de expressão.

Era bom que todos pensassem nos milhões de refugiados que vagueiam pelo mundo, na fome e doenças que sofrem, nas guerras que arruínam vidas e extinguem famílias, nos vizinhos do norte de África que se afogam no Mediterrâneo, nos países que vivem sob ditaduras e sujeitos a líderes cruéis e sanguinários.

A civilização está ameaçada. Em 2019, o número de países com regimes democráticos foi, de novo, ultrapassado pelos que vivem sob governos autoritários.

Será pedir muito, solicitar que não usem os textos que escrevo para, quer os apoiem ou combatam, ameaças, insultos, manifestações de ódio e ultrajes a quem pensa diferente?
Só há um Planeta e é nele que temos de procurar a harmonia no pluralismo das opiniões e nas divergências ideológicas.

Qualquer democracia é bem melhor do que uma ditadura e são menos os que se batem na defesa da primeira. Só quando a perdem se dão conta do horror que é viver sem ela.

Comentários

Jaime Santos disse…
Escreveu um belíssimo texto, cheio de ironia. Não sem raiva, mas a do justo, e onde não faltou o pormenor grotesco da presença do gigante e do anão na homenagem ao defunto ditador.

Cada vítima da Ditadura merece o nosso respeito e homenagem, sejam aqueles que contra ela lutaram, sejam simplesmente todos os expostos à guerra e à miséria que ela permitiu e prolongou.

Nasci antes do 25 de Abril, mas não me lembro de viver senão em Democracia, muito embora me lembre ainda da miséria dos anos 80, das escolas não-aquecidas onde estudávamos tiritando de frio, do racismo e da homofobia que ainda falavam (e falam) alto nos recreios dessas mesmas escolas, da Ciência inexistente nas Faculdades, e por aí a fora.

Mas não consigo deixar de pensar que o crime mais infame da Ditadura foi mesmo assassinato do General Humberto Delgado, a quem o Soberano e ele só tinha provavelmente conduzido à condição de Presidente da República e a quem as chapeladas roubaram o exercício do mais alto cargo. Tivesse ele subido ao Poder e Portugal poderia porventura ter sido poupado a mais de uma década de Guerra Colonial...

Não importa, o nosso caminho após 74 tem sido tudo menos fácil e a promessa da política revelou-se muitas vezes uma desilusão, pois se a Ditadura acabou, não acabaram logo o autoritarismo e a corrupção a ela associados, mas o País de então é para os jovens de hoje e felizmente, inimaginável. Alguma coisa fizemos bem, concerteza.

Parabéns pelo seu texto. Bem haja...

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