O fatinho da comunhão solene (Minicrónica)
O primeiro fato de que me recordo foi mandado fazer para o exame da 3.ª classe. Tinha uns calções e um casaco de manga curta que, já adulto, servia de diversão familiar, por falta de pano, dizia eu, usavam-se assim, garantia a minha mãe.
Usei-o pela primeira vez quando fiz o exame da 3-ª classe, em Vila Fernando, num júri presidido pela D. Marianinha e tendo como vogal a professora dos alunos, minha mãe.
Os garotos de Vila Garcia (Cume, Cairrão e Carapito), partimos cedo, com a professora e uma ou outra mãe, a pé, naturalmente, num percurso de pouco mais de 2 km.
Finda a prova oral, no mesmo dia, voltámos para o Cume, depois de nos separarmos, já perto, dos colegas de Cairrão. Os do Carapito lá foram para casa, todos felizes com o elogio coletivo que a D. Marianinha tinha feito ao nosso saber. Tinham ainda cerca de 1,5 km para andar, tal como sucedera de manhã, antes de nos reunirmos na escola.
Desse fatinho só recordo o dia do exame, e certamente durou até se romper.
No ano seguinte tive um fato a sério. Calças e casaco com fazenda, botões e preparos, e o lacinho a condizer, adrede comprados na Guarda, na loja Conde & Gião, onde a minha mãe se deslocou, com as medidas tiradas pelo alfaiate do Cume, sr. Álvaro Pissarra. Fui sujeito a várias provas para que se ajustasse ao corpo e saísse obra asseada. A camisa foi feita por medida, por uma costureira da Miuzela, durante as férias do Natal. Nunca um fato foi usado em tantos eventos como esse. Ah, os suspensórios completavam o fato.
Foi o da comunhão solene, onde uma facha branca com uma cruz vermelha foi posta na manga do braço esquerdo, para a missa e procissão, enquanto as meninas levavam uma touca, também branca, com cruz igual. Íamos vestidos de Cruzados, como se essa época prosélita merecesse ainda celebração.
Foi o vestuário do crisma, poupado ao efeito devastador dos santos óleos, com que o sr. bispo Domingos me ungiu a testa com o sinal +, se algum pingo o untasse.
Serviu para as provas da 4.ª classe, escrita e oral, com distinção, onde tal classificação, apesar de rara, coube a metade dos alunos de Vila Garcia.
No exame de admissão ao liceu foi igualmente a encadernação para as provas, escrita e oral, que precederam a entrada. Nunca um fato foi usado para tantos sacramentos e tal vastidão de exames.
Na Guarda, deixado aos cuidados da criada e ao alheamento do pai, passei a vestir o que tivesse à mão, a julgar que as pernas das calças eram redondas e dispensavam o vinco.
Só aos 14 anos, me encantou uma peliça nova e confortável, com pele de raposa, para suportar o frio da Guarda. O boné de orelhas e o garruço, tricotado pela mãe, aqueciam, mas não evitavam as frieiras que, com o cieiro, me atormentavam nos invernos. Para o cieiro havia a manteiga de cacau que o Sr. Teixeira, que dava o nome à farmácia, vendia por cinco tostões, em quantidade generosa. Para as frieiras não havia remédio, e o calor da braseira a carvão, acesa com carqueja, só aumentava a dor.
O que me surpreendia na peliça nova era o bolso do lado direito, que raio de mania a do alfaiate, colocar-me o bolso no lado contrário, e só compreendi quando um colega me perguntou se a peliça era de um casaco virado do meu pai. E era.
Aumentou o meu orgulho, pois adorava vestir coisas do pai, homem com mais 15 cm do que o filho mais velho atingiria e de quem herdei os defeitos e algumas virtudes raras.
Fato completo só me recordo de voltar a ter quando a minha mãe se deslocou à Guarda para me comprar o enxoval, quando concorri para o distrito de Castelo Branco, antes de saber que seria colocado na escola masculina dos Penedos Altos, na Covilhã.
Da odisseia das compras a que tive de assistir, recordo a irreverência, para me livrar das amigas que a minha mãe encontrara, ex-colegas suas do liceu, a gabarem o menino e a sujarem-me com batom. À frente das amigas, depois de me comprar uma escova para o fato, perguntou se não tinham, por acaso, outra para os sapatos, e eu disse, mãe, esta é suficiente para ambos.
Não merecia o enxovalho, mas era assim que lhe saíra o primogénito, com defeitos que mantenho, a ternura que sempre dediquei aos pais, e o orgulho deles a verem como sou.
Ainda hoje não me conformo com a sua falta.
Usei-o pela primeira vez quando fiz o exame da 3-ª classe, em Vila Fernando, num júri presidido pela D. Marianinha e tendo como vogal a professora dos alunos, minha mãe.
Os garotos de Vila Garcia (Cume, Cairrão e Carapito), partimos cedo, com a professora e uma ou outra mãe, a pé, naturalmente, num percurso de pouco mais de 2 km.
Finda a prova oral, no mesmo dia, voltámos para o Cume, depois de nos separarmos, já perto, dos colegas de Cairrão. Os do Carapito lá foram para casa, todos felizes com o elogio coletivo que a D. Marianinha tinha feito ao nosso saber. Tinham ainda cerca de 1,5 km para andar, tal como sucedera de manhã, antes de nos reunirmos na escola.
Desse fatinho só recordo o dia do exame, e certamente durou até se romper.
No ano seguinte tive um fato a sério. Calças e casaco com fazenda, botões e preparos, e o lacinho a condizer, adrede comprados na Guarda, na loja Conde & Gião, onde a minha mãe se deslocou, com as medidas tiradas pelo alfaiate do Cume, sr. Álvaro Pissarra. Fui sujeito a várias provas para que se ajustasse ao corpo e saísse obra asseada. A camisa foi feita por medida, por uma costureira da Miuzela, durante as férias do Natal. Nunca um fato foi usado em tantos eventos como esse. Ah, os suspensórios completavam o fato.
Foi o da comunhão solene, onde uma facha branca com uma cruz vermelha foi posta na manga do braço esquerdo, para a missa e procissão, enquanto as meninas levavam uma touca, também branca, com cruz igual. Íamos vestidos de Cruzados, como se essa época prosélita merecesse ainda celebração.
Foi o vestuário do crisma, poupado ao efeito devastador dos santos óleos, com que o sr. bispo Domingos me ungiu a testa com o sinal +, se algum pingo o untasse.
Serviu para as provas da 4.ª classe, escrita e oral, com distinção, onde tal classificação, apesar de rara, coube a metade dos alunos de Vila Garcia.
No exame de admissão ao liceu foi igualmente a encadernação para as provas, escrita e oral, que precederam a entrada. Nunca um fato foi usado para tantos sacramentos e tal vastidão de exames.
Na Guarda, deixado aos cuidados da criada e ao alheamento do pai, passei a vestir o que tivesse à mão, a julgar que as pernas das calças eram redondas e dispensavam o vinco.
Só aos 14 anos, me encantou uma peliça nova e confortável, com pele de raposa, para suportar o frio da Guarda. O boné de orelhas e o garruço, tricotado pela mãe, aqueciam, mas não evitavam as frieiras que, com o cieiro, me atormentavam nos invernos. Para o cieiro havia a manteiga de cacau que o Sr. Teixeira, que dava o nome à farmácia, vendia por cinco tostões, em quantidade generosa. Para as frieiras não havia remédio, e o calor da braseira a carvão, acesa com carqueja, só aumentava a dor.
O que me surpreendia na peliça nova era o bolso do lado direito, que raio de mania a do alfaiate, colocar-me o bolso no lado contrário, e só compreendi quando um colega me perguntou se a peliça era de um casaco virado do meu pai. E era.
Aumentou o meu orgulho, pois adorava vestir coisas do pai, homem com mais 15 cm do que o filho mais velho atingiria e de quem herdei os defeitos e algumas virtudes raras.
Fato completo só me recordo de voltar a ter quando a minha mãe se deslocou à Guarda para me comprar o enxoval, quando concorri para o distrito de Castelo Branco, antes de saber que seria colocado na escola masculina dos Penedos Altos, na Covilhã.
Da odisseia das compras a que tive de assistir, recordo a irreverência, para me livrar das amigas que a minha mãe encontrara, ex-colegas suas do liceu, a gabarem o menino e a sujarem-me com batom. À frente das amigas, depois de me comprar uma escova para o fato, perguntou se não tinham, por acaso, outra para os sapatos, e eu disse, mãe, esta é suficiente para ambos.
Não merecia o enxovalho, mas era assim que lhe saíra o primogénito, com defeitos que mantenho, a ternura que sempre dediquei aos pais, e o orgulho deles a verem como sou.
Ainda hoje não me conformo com a sua falta.
Ponte Europa / Sorumbático
Comentários
Julgo que foi um escritor italiano que disse algures que a memória é o único Paraíso de onde não podemos ser expulsos. É o que nos resta a nós não-crentes e porventura também a consciência amarga de que se não nos vamos juntar aos nossos entes queridos, iremos pelo menos compartilhar o seu destino...