Marcelo Rebelo de Sousa – Subsídios para uma biografia ocultada (4889 carateres)
Depois da agradável surpresa de um PR inteligente, culto e simpático, sucedendo a dez anos de um empedernido e azedo salazarista, Marcelo começou a arruinar, no segundo mandato, a imagem do primeiro. Já gastou o cabedal de simpatia que mereceu.
A irrefreável tendência para comentar tudo, do futebol à
política, da canoagem à poesia, das vacinas à economia, dos incêndios às
inundações, das decisões políticas aos autores, dos OE à conduta das oposições,
só se contém perante eventuais fugas de informação da sua Casa Militar e notícias
de pedofilia eclesiástica.
Ao contrário dos beija-mãos ao Papa e aos bispos, exibe uma
postura arrogante com os políticos, quiçá ressabiado da derrota na Câmara de
Lisboa, do epíteto do PM que o fez ministro e das acusações de ser delator das
decisões dos Conselhos de Ministros para os media, mestre na intriga e
na dissimulação, nas pretensas idas à casa de banho.
O homem que chamou Lelé da Cuca ao dono do semanário que o
nomeou diretor, para se desculpar com um teste aos revisores e lhe revelar, depois,
que o considerava como pai, é o mesmo que escreveu a Marcelo Caetano o elogiá-lo:
“Como Vossa Excelência apontou, Aveiro representou, um pouco mais do que seria
legítimo esperar, uma expressão política da posição do PC e o esbatimento das
veleidades «soaristas»1.
É ainda o mesmo que na entrevista telefónica à jornalista
Alexandra Tavares-Teles, na revista Notícias Magazine, recordando, ‘como viveu
o 25 de Abril’, refere a resposta que deu ao pai, influente ministro da
ditadura, depois de este lhe ter dito que Marcelo Caetano lhe garantira que
vinham a caminho de Lisboa tropas fiéis ao governo: «Disse-lhe o que sabia.
‘Não, pai, não vêm forças nenhumas, não pensem nisso, isto está a correr
rapidamente. Acabou.’». E, quando a jornalista lhe perguntou: «De onde vinha
essa certeza?», respondeu com aquela candura que usa na intriga e nos afetos:
- O António Reis [militante e dirigente político ligado ao
PS] tinha-me avisado da proximidade do 25 de Abril com alguma precisão. E
embora o meu pai fosse dos membros do governo teoricamente mais bem informados,
percebi, naquele momento, que, de facto, estava muito pouco informado. Penso que
ele terá transmitido a informação a Marcello Caetano e que este terá
respondido: “Esse Marcelo Nuno só traz más notícias. Isso são coisas do
contra». 2
Não sei o que mais admirar, se a insensatez do jovem
político António Reis, a devoção filial de Marcelo ao ministro fascista ou a
denúncia da Revolução ao governo e a traição à (in)confidência do amigo. Aliás,
era interessante saber quando foi «aquele momento», o da indiscrição de António
Reis a Marcelo Nuno e o da delação ao governo, através do [pai] ministro de
Caetano. Felizmente, Marcelo Caetano não o levava a sério.
Marcelo não é só o hipócrita que, na apoteose da fé, deixou
numa cama o sacramento do matrimónio indissolúvel e levou para outra as
hormonas e o adultério3. Foi também, e é, o artífice das soluções
mais reacionárias que a direita democrática tomou em Portugal.
Foi contra o SNS, lutando depois contra a universalidade,
alegando a injustiça do seu caso, podia e devia pagar a saúde, e tinha direito
à gratuitidade. Com Guterres pensou o referendo que atrasou a legislação que aprovou
a despenalização da IVG. Este Marcelo, que lava mais branco o passado do que
qualquer detergente as nódoas, será o mesmo cujos preconceitos pios preferiam a
morte de mulheres cuja vida perigasse com a gravidez, a gestação obrigatória das
vítimas de violação e das grávidas de um feto teratogénico?
Esteve sempre, nos costumes, do lado mais reacionário, tal
como na política. Veja-se:
Marcelo Rebelo de Sousa, José Miguel Júdice, Santana Lopes,
Manuel Durão Barroso e António Pinto Leite surgiram no início de 1984,
organizados, para fazerem regressar ao poder, por via democrática, a velha
política, sob o pseudónimo de “Nova Esperança”, e foram decisivos em dois
congressos do PSD, em 1984 [Braga] derrotando Mota Amaral com Mota Pinto e,
especialmente, em 1985 [Figueira da Foz], na improvável ascensão à liderança
partidária do obscuro salazarista Cavaco Silva, derrotando João Salgueiro.
Marcelo não foi apenas líder do PSD, foi sempre o defensor
das posições que são hoje minoritárias na sociedade portuguesa, por mais
anestesiada e aturdida que se encontre.
Depois de dez anos de Cavaco, a reintegrar pides e a gozar
os pingues fundos europeus conseguidos com a adesão à UE por Mário Soares,
podia pensar-se que Marcelo teria o remorso cristão e democrático, e reincidiu
na vivenda de Ricardo Salgado, juntando ao casal do anfitrião, o seu, o de
Durão Barroso e o de Cavaco, para preparar a primeira candidatura vitoriosa de
Cavaco a PR.
Nunca ninguém o confrontou sobre a posição que tomou quando
Eanes defrontou o gen. Soares Carneiro, ex-diretor do presídio colonial de S.
Nicolau e que, após a derrota, em afronta aos militares de Abril, Cavaco
reintegrou no ativo e promoveu a CEMGFA.
Marcelo, que aceitou ser presidente da Fundação Casa de
Bragança, saberia que o cargo era incompatível com a ética republicana e a
presidência da República? Pode agradar à populaça, mas não serve a democracia.
Tenho por este PR o respeito mínimo a que o Código Penal me
obriga; julgo-o capaz de quase tudo e com uma agenda perigosa. Vejo nele um
perturbador da governabilidade e das relações interpartidárias, por obsessão
dele e não por desconfiança minha.
É preciso avisar a malta! É urgente impedir a presidencialização do regime parlamentar através do PSD confiscado pelo PR.
1 (in «Cartas Particulares a Marcello Caetano»,
organização e seleção de José Freire Antunes, vol. 2, Lisboa, 1985, p. 353 via
Abril de Novo Magazine)
2 (In Notícias Magazine, 22 de abril de 2018,
pág. 20, 3.ª coluna).
3 Vocábulo da linguagem pia.
Comentários
Já se sabe que quem é crente raramente consegue ser coerente com aquilo em que acredita, mas como a Esquerda republicana e social-democrata convive bem com essa inerente fragilidade humana, e exige às pessoas apenas que sejam meramente decentes (opinião diferente parece ter uma certa Esquerda Marxista que acredita na austeridade pessoal e no sacrifício do indivíduo), é melhor que não nos acusem de sermos agora moralistas, porque na verdade somos o contrário...
Impoluta honradez sim senhor, santidade, não obrigado...
Até porque o resto do seu comportamento parece bem mais grave que essas bagatelas de alcova. A primeira preocupação de MRS parece ser MRS, no que ele não difere de Cavaco Silva, José Manuel Durão Barroso, Duarte Lima, Dias Loureiro e outros tantos figurões do cavaquismo, que por sua vez só diferem dele pelo nascimento e por uma certa falta de sofisticação (tirando Barroso, aliás, que até calha de ser o pior de todos).
Pacheco Pereira diz amiúde que Rebelo de Sousa é genuinamente um cristão perplexo com a complexidade e injustiça do mundo, mas francamente, não percebo bem em que é que isso se traduz no seu comportamento, ele que parece gostar da intriga e da pequena conspiração, sem grande objetivo que não o da promoção da sua carreira política. Nunca percebi qual a sua agenda. Esteve sempre foi contra tudo: SNS, aborto, regionalização e por aí a fora...
E a Direita ainda se queixa de José Sócrates. Só se for porque o ex-PM é bastante mais tosco do que eles a fazer o mesmo que eles fizeram. E ainda ao menos tinha uma ideia para o País. Errada, mas tinha...
Que diferença entre a dignidade de Sá Carneiro e a hipocrisia de Marcelo!
E vale a pena lembrar que Mário Soares e Maria Barroso não se portaram muito bem com eles na altura...
Saúda-se agora a coragem de Paulo Rangel, muito embora tenha assumido publicamente a homossexualidade apenas após uma campanha vergonhosa que foi aparentemente feita contra ele no PSD.
Mas vindo de onde ele vem, não me surpreende a reticência, e ao que parece quem o conhecia sabia que nunca escondeu a orientação sexual. Dá um bom exemplo para os jovens provenientes de meios conservadores, que se debatem com o mesmos problemas que ele, mostrando-lhes que é coisa de que não é preciso ter vergonha.
Isto dito, continuo a não ir com a cara dele :). É um trauliteiro em campanha e alinha politicamente com a Direita passista e cavaquista. Não precisamos de um Passos culto, precisamos de um PSD recentrado, projeto em que Rio falhou.
Mas mais importante do que a questão dos costumes, que deveria ser irrelevante para quem é de Esquerda, mau grado a hipocrisia da Direita em relação a isso, Sá Carneiro era um homem com uma visão para o País, mesmo que se discordasse dela (nunca percebi como poderia um verdadeiro Social-Democrata, ou um verdadeiro Democrata-Cristão, no caso de Freitas do Amaral, apoiar o sinistro Soares Carneiro como candidato a PR).
Cavaco secou o PSD e não me parece que Marcelo alguma vez se tenha desvinculado do cavaquismo, como o Carlos aliás bem nota... Nem sequer me lembro de qualquer projeto estruturante que MRS tenha apresentado enquanto líder da Oposição...
A sua especialidade são mais as intrigas de salão...