A memória e o arrependimento – crónica
A memória não é apenas a capacidade de recordar, repetir e localizar os sentimentos e factos vividos, para os lembrar ou ocultar. Atrevo-me a dizer que é também a aptidão para esquecer o que desagrada ou faz sofrer, e tudo o que nos envergonha ou angustia.
Foram tantas as vezes que me senti constrangido, pela imprudência e pelo que se chama popularmente «meter o pé na argola», que me surpreende ter tão fraca memória. Muitos anos depois, em amena cavaqueira, recordei um silêncio constrangedor que provoquei.
Foi na primeira metade da década de sessenta do século passado. Os companheiros de mesa, acabado o jantar, iniciámos o passeio habitual. Éramos quatro amigos que a época e os hábitos obrigavam a cerimónia recíproca, senhor professor para aqui, senhor doutor para ali, o juiz, o delegado do Ministério Público, o conservador do Registo Predial e o delegado escolar, ora cronista.
A conversa decorria mansa com os quatro amigos alinhados de acordo com a condição, o Dr. Moniz da Maia à direita do juiz Carlos Crespo Dias Coelho, o Dr. Dantas, conservador do Registo Predial, à esquerda e eu à sua esquerda . Íamos falando, descontraidamente, numa linguagem contida e mantendo a delicadeza de uma camaradagem, que não dispensava a etiqueta e o respeito mútuo.
O Moniz da Maia, delegado do Ministério Público, velho repúblico de Coimbra, onde foi conhecido por Eça, era o único que vestia mal a pele de bem-comportado. Era um excelente indivíduo e, nessa noite, disse, referindo-se a alguém, que era uma besta, perante o constrangimento do juiz Carlos Crespo e a minha saída pronta, por distração ou tentativa de ser gracioso, “…não desfazendo…”, a que se seguiu um silêncio desconcertante enquanto me secava a boca e vinha à memória o resto do bordão usado na Beira Alta, quando se elogiava alguém, … não desfazendo …, em quem está presente.
Não houve buraco onde coubesse, saliva que molhasse os lábios, e o raio da conversa ficou interrompida. Hoje lembrei-me de novo desse lapso de tempo, dos amigos levados pelos anos e da cortesia habitual que ampliou a infeliz citação da frase tantas vezes repetida inconscientemente nas aldeias da minha infância.
E ri-me!
Ponte Europa / Sorumbático
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