A LIBERDADE QUE ABRIL NOS DEU


                                                                                         (Uma tira d'O Inocêncio, que não a mencionada nesta crónica)

O Inocêncio

Por Onofre Varela

Na minha carreira de ilustrador, cartunista, caricaturista e autor de textos, exercida em todos os jornais do Porto – de 1969, inicialmente como colaborador eventual, e a partir de 1978 a tempo inteiro até ao ano 2000 (e até hoje como “Free-lancer”) totalizando 54 anos de exercício do jornalismo senti por várias vezes a censura “caseira” depois do promissor 25 de Abril de 1974.

Censura que, partindo de directores e chefes de Redacção, na verdade, a maioria das vezes teria sido impulsionada por “mola” exterior aos interesses dos próprios e do jornal, pelo facto de a censura ter sido exercida depois do texto, ou do desenho, publicado… demonstrando que a origem do censor se situava fora do jornal, a cujo conteúdo só tinha acesso depois de o periódico chegar às bancas de venda.

No tempo que reporto era comum os responsáveis editoriais serem visitados por agentes religiosos. Nos jornais O Primeiro de Janeiro (PJ) e Jornal de Notícias (JN), os respectivos directores recebiam a visita frequente do mesmo membro da seita Opus Dei “engajada” no Vaticano, que reunia com eles após o fecho da edição, cerca das duas horas da madrugada (eu cruzava-me com ele à saída do serviço, em frente à porta do gabinete da direcção).

As próprias Redacções tinham jornalistas afectos à Igreja Católica e eram eles que redigiam as notícias que abordavam Religião, sempre no enaltecimento da Igreja, eliminando conteúdos críticos do culto (no JN os textos enaltecedores da Igreja Católica eram redigidos pelo jornalista sacerdote católico, e chefe de Redacção, Rui Osório). Quanto à política, o sentimento partidário dos directores (e administradores) não era estranho à orientação de cada jornal, e os almoços e jantares com deputados e líderes partidários eram bastante frequentes. Ninguém acreditará que a razão de tais pantagruélicas reuniões… seria o mero cumprimento do prazer do palato!

Hoje, aquele “clikque faz alterações na História da Humanidade, parece ser o ruído da culatra a meter a bala na câmara!… Bala que pode não ser material e explosiva, mas é simbolizada no modo de matar a liberdade de expressão por outros meios que não os físicos que no correr da História sempre foram tão usados, desde Viriato e Augusto César, até Olof Palme, passando por Luther King e J. F. Kennedy, e lembrando os mais recentes homicídios ideológicos, como o da socióloga e activista política brasileira Marielle e muitos profissionais da informação que são alvos da foice da morte a mando de ditadores em várias regiões do mundo, com predominância na Rússia dirigida pelo inimigo público Putin.

Estou a lembrar-me de uma censura a um desenho meu, exercida pelo director do jornal O Primeiro de Janeiro, em ano anterior a 1980, ainda com Sá Carneiro no cargo de Primeiro-ministro (o atentado à avioneta, de que resultou a sua morte, ocorreu a 4 de Dezembro de 1980). Então eu publicava na última página a tira “O Inocêncio” sem periodicidade certa (ilustro este texto com uma dessas tiras publicadas, referenciada com o número 10, que não é a que motiva esta recordação). Já não me recordo do teor da crítica que então desenhei referindo Sá Carneiro. O director (António Freitas Cruz) era seu amigo pessoal e quando o desenho lhe chegou às mãos para ser publicado, veio ter comigo e referiu o texto (o qual não recordo) dizendo que a sua construção não era “a melhor” e pedia-me para “lhe dar uma volta”.

Olhei a tira… e reescrevi o mesmo recado que queria dar com aquele desenho, mas usando outras palavras. Ele olhou-o, devolveu-mo com um sorriso, e disse: “você é capaz de fazer melhor!”.

Vi que o director nunca aprovaria a crítica que eu fazia a Sá Carneiro com aquele desenho, fosse qual fosse a legenda com que o complementasse. Voltei para o meu posto de trabalho, meti o “boneco” numa gaveta e não pensei mais no assunto. Algum tempo depois o director veio ter comigo com um sorriso na cara: “Então?… O Inocêncio?”. Respondi-lhe: “O Inocêncio foi à praia, meteu-se no mar e não voltou… afogou-se!”.

Foi o fim daquela tira ocasional e que durou pouco tempo de publicação.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)



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