A LIBERDADE QUE ABRIL NOS DEU

"O Chato" e o general Ramalho Eanes

Para além das censuras internas e das que eram enviadas por grupos de interesse (comercial ou religioso) que chegavam aos directores dos jornais onde trabalhei, também havia mensagens de leitores anónimos indispostos (sempre covardemente anónimos. Não tive, sequer, um, que se identificasse).

No Jornal de Notícias (JN), para uma notícia que narrava um incidente numa procissão algures no centro do país, com pessoas de opa vestida a envolverem-se em cena de pancadaria, fiz um desenho representando um sujeito envergando opa e usando um crucifixo como arma para atacar outro figurante na procissão. Este “boneco” motivou um telefonema de uma leitora escandalizada, não pela cena de pancadaria real, mas pelo uso do crucifixo como arma na ilustração que satirizava o acontecimento. A leitora falou comigo, reprovou o meu desenho e ameaçou com o meu despedimento que ia propor ao director. Deixei-a à vontade para promover o meu despedimento falando com o director do jornal, com o presidente da República ou com o Papa, a escolha seria sua.

Um outro leitor, indisposto com um desenho publicado no jornalO Gaiense”, escreveu ao jornal desejandolonga vida ao jornal, mas não ao cartunista”; e outro leitor do jornal “O Comércio do Porto” lamentou que a minha mãe “não tivesse apertado as pernas” no momento de eu nascer!… Todos estes leitores, candidatos ao estúpido cargo de censor desmiolado, são gente decentíssimacomo se vê pela amostra!…

Em 1977 editou-se no Porto o semanário humorístico “O Chato”, dirigido pela minha amiga Margarida Fonseca (a qual jamais vi. Tinha sido directora do jornal “A Pantera”. [No JN tive uma camarada com o mesmo nome, mas não é a mesma pessoa]). Criei o grafismo do título do jornal, ilustrado com uma personagem representativa de “um chato”, cuja ideia fui buscar à memória que tinha do jornal juvenil da minha meninice, “O Mosquito”.

O Chato, que tinha como lema: “o único jornal declaradamente humorístico do país”, era produzido numa sala alugada na torre do Jornal de Notícias, editado pela “Editora Cidade Neve” sediada na Covilhã, impresso nas oficinas gráficas do JN e distribuído juntamente com o JN nos dias da sua saída, às Sextas-feiras… era “uma festa” ver os ardinas, na rua, apregoando o Chato juntamente com o Notícias, o Janeiro e o Comércio!

Num dos dias politicamente atribulados, que eram comuns após a Revolução de Abril acontecida havia três anos, o presidente da República (Ramalho Eanes) foi pai. Estava na presidência há cerca de um ano, era criticado por forças políticas, e em conversas de café dizia-se que “o Presidente não faz nada, porque se fizesse alguma coisa dissolvia a Assembleia e convocava eleições”.

O Chato (nº 7, de 28 de Outubro de 1977) publicou alguns postais para serem recortados, colados num postal dos CTT e enviados para o presidente da República, parabenizando-o pelo facto. Lembro-me de um desses postais representar um travesti horrível de feio, dizendo: “Ai, querido, quem me dera que o filho fosse nosso!”

Aproveitando o dito popular de o presidente “não fazer nada”, fiz um desenho para ilustrar a capa dessa edição, representando Eanes a parir um catraio, com dois médicos ajudando ao parto. Um deles, pergunta: “Quem foi que disse que num ano de presidência ele não fez nada?”

Dias depois recebi um telefonema estranho. Um sujeito dizia-me ser da Polícia Judiciária”… imaginei ser um amigo a brincar comigo e perguntei: “Quem foi que eu matei desta vez?”. Do outro lado da linha recebi uma gargalhada e mantivemos uma conversa surrealista porque não acreditei ser um telefonema real… aquilo era alguém a brincar comigo... mas não conseguia reconhecer a voz. Acabei por perguntar o que queria ele que eu fizesse. “Que passe por aqui”, disse-me ele. “Por aqui, por onde?” perguntei. “Pela Polícia Judiciária”, respondeu. “Eu tenho estado a brincar, e você?” quis saber. “Eu estou a falar a sério!” foi a resposta. Ó diabo!... Aquilo era mesmo muito sério!... 

Antes de ir à Judiciária passei pelo consultório do advogado Américo Taborda (político anti-fascista, com escritório junto ao cinema Rivoli), para preparar a minha defesa. Disse-me para eu manter que a minha ideia foi brincar com os ditos de café, e nunca insultar o senhor presidente da República… longe de mim tal ideia! Assim fiz… e o processo acabou por ser arquivado, não chegando a tribunal.

Penso que Ramalho Eanes nunca soube do meu desenho. O processo judicial foi obra dos seus assessores que são sempre mais papistas do que o Papa” no cumprimento dos seus deveres.

Na Polícia Judiciária ouvi comentar que naquele momento lhes tinha chegado o 50º processo contra Vera Lagoa, directora do jornal “O Diabo”!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)


                           Primeira página do jornal "O Chato" referindo a paternidade de Eanes




                       Cabeçalho da revista juvenil "O Mosquito" nº 887 (Ano XII) 
                       de 24 de Dezembro de 1947.
                       Número especial de Natal… daí a neve que decora o “Lettering”.
                       Este boneco de "O Mosquito" serviu-me de modelo para desenhar 
                       a figura do "Chato" que figura junto ao título do jornal.

Comentários

egr disse…
Não se chamava Américo Taborda mas sim António Taborda ! Excelente advogado , e cidadão exemplar ! Tive o privilégio de o conhecer e ter com ele uma relação de recíproca estima !
Onofre Varela disse…
Tem toda a razão. Teimo em chamar-lhe Américo... não é a primeira vez que o faço... e penso que é pelo facto de Américo ser o nome do meu pai... mas não consigo encontrar a relação de factos ou sentimentos que me levem a trocar o nome!... Coisas da vida!... Obrigado pela rectificação.

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