Carta de um filho ao pai desavindo (fotocópia clandestina).
Senhor meu pai, meu querido pai:
Sei que te desgostei e não merecias. Sei como sofreste com o teu pai e o teu sogro, meus queridos avós, quando viste ruir o mundo das nossas famílias no turbilhão que varreu o país e o amputou de Cabo Verde a Timor e difamou os portugueses de bem.
Sei do desprezo a que os meus avós foram votados e da felicidade com que me casaste com a Rita para não teres netos com sangue jacobino ou oriundos da plebe.
Sei que sofreste em silêncio o desejo de reconduzires o País aos santos e retos caminhos que a Providência lhe destinou com o pragmatismo de um líder e martírio de santo.
Sei que não me perdoas o divórcio da noiva que me escolheste e te deu quatro netos e o pecado de dissolver o casamento canónico e, ao contrário de ti, perigar a alma para não viver em mancebia, pecado mais venial do que a ofensa ao sacramento do matrimónio.
Sei que não fiz jus ao esmero de me afastares da escola pública e seus perigos, quando a plebe aí ascendeu, doze anos do secundário no Estoril, salesianos, e cinco do superior na Católica, para continuar a viver os valores cristãos da nossa casa. Só depois me graduei na laica INSEAD de Fontainebleau. Não esqueci os valores; e continuo a rezar o terço.
Fui sempre aluno distinto e com as tuas virtudes até ao divórcio, mas a carne é fraca. As hormonas fizeram-me a trocar a melancolia da aristocrata pela fogosidade da burguesa. Bem sei que podia continuar casado com a Rita e viver com esta. Errei.
Não fiz má figura quando o nosso amigo Ricardo me introduziu no mundo dos negócios aqui onde o padrinho se finou. Ainda rezo para que a Justiça seja branda com ele. Ganho muito dinheiro, mas tive de abandonar as cunhas. Sei o que nos custou a que te afastou.
Estou ansioso pelo teu perdão. Os teus netos querem visitar-te ainda no palácio onde se perfilam à tua passagem os criados fardados e dobram a coluna os que andam à paisana. A maioria continua a gostar de ti, cada vez mais, à medida que incomodas os que agora mandam, porque tu os ajudaste, e o país pensa que é teu dever puxar-lhes as orelhas.
Já não uso o aparelho ortodôntico e deixei as pulseiras budistas que odiavas. Diz que estou perdoado. Tenho saudades e não quero que te fines antes de te beijar de novo.
Envia-me a tua bênção, senhor meu pai.
Teu,
a) Assinatura ocultada (de acordo com a lei de proteção de dados).
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