SENTIR-SE E SER-SE OFENDIDO

A clérigo sandeu parece-lhe que todo o mundo é seu”

(Provérbio Popular)



Por Onofre Varela

A propósito de o Papa Francisco I condenar populismos e defender divorciados e homossexuais (tal como a imprensa noticiou há cerca de uma semana), mostrando ser a primeira vez que o Vaticano tem na Cadeira de São Pedro um clérigo verdadeiramente sensível e fraterno na defesa das liberdades individuais – limpando, com as suas atitudes e os seus discursos, a parte mais negra da História que a Igreja Católica escreveu durante séculos – lembrei-me de um caso ocorrido em Fevereiro de 2016. Já lá vão quase dez anos, mas o sentimento de escândalo que o tal caso provocou, continua actual; por isso considerei dever ser lembrado.

Nessa ocasião, para assinalar a aprovação da lei que permite a adopção de crianças por parte de parelhas do mesmo sexo (eu prefiro usar o termo “parelhas” em vez de “casais”, porque “um casal” implica dois indivíduos de sexo diferente: um macho e uma fêmea. O termo “parelha” designa “um par”… neste caso, “um par de pessoas”, que é o que é, e não um casal!) o Bloco de Esquerda (BE) criou um cartaz que gerou controvérsia, representando, em desenho, a figura (graficamente esbelta e religiosamente correcta) de Jesus Cristo, com a frase "Jesus também tinha 2 pais". Esta mensagem, sob o ponto de vista histórico, científico e filosófico, é imaculada… não ofende ninguém e sublinha o que as religiões cristãs afirmam: Jesus é filho de Deus, e José é o seu pai adoptivo! Logo, tendo um pai adoptivo, não resta dúvida de que conta com dois pais… o adoptivo… e o outro!

(Aqui, “o outro”, pretende-se que seja o biológico. Mas na estória cristã, a Biologia não está presente… e aquilo não se entende… é uma confusão em que entra a figura de uma casta e branca pombinha, chamada “Espírito Santo”, como portadora do esperma divino que depositou no ovário de Maria… o que dificulta a compreensão do acto!Os crentes afirmam esta “narrativa de fé” como sendo realidade, mas garanto que não a entendem… sendo coisa a ser resolvida pelas mentes religiosas, também garanto que não a resolvem… dando uma mãozinha à atitude exploradora da crença).

A aprovação da Lei da Adopção foi confirmada na Assembleia da República no dia 10 de Fevereiro, depois de Cavaco Silva (então presidente da República) a ter vetado. Em termos de religiosidade, não há diferença no tratamento das leis por parte de Cavaco e de Marcelo. Ambos são católicos… e na presidência de uma República laica (repito, em maiúsculas: LAICA) perfilam-se ao lado da Igreja, desaprovando tudo quanto a LAICIDADE REPUBLICANA diz dever ser aprovado (a Constituição Portuguesa permite que um qualquer cidadão fiel a uma qualquer fé religiosa, seja eleito para presidir à República que é LAICA!… E permite-o, exactamente, por atribuir legalidade ao sentimento religioso, à sua fé e à sua livre expressão, quer se seja a favor, ou contra… correndo-se o risco de a LAICIDADE republicana não ser cumprida. Idiossincrasias da Democracia!…).

O BE, fazendo Jus à política de Esquerda que representa, concordou com a lei da adopção de crianças por parelhas do mesmo sexo, bem como também concorda com o casamento homossexual porque respeita a dignidade do Ser Humano. A Igreja Católica é que não alinha com tal respeito e contestou a lei por se sentir ofendida (esquecendo que estava a ofender a Liberdade e a Dignidade de quem quer ver a lei aprovada, em nome da sua própria Liberdade que o espírito do 25 de Abril lhe deu). Numa atitude de assumir a figura do “politicamente correcto”, o BE reconheceu ter sido um erro usar aquela mensagem e desculpou-se, retirando os cartazes, demonstrando usar de muito mais compreensão do que aquela de que a Igreja Católica se diz portadora.

Quero aqui dizer que quando alguém se sente ofendido, esse sentimento não é, por si só, prova de que o tenha sido realmente. “Sentir-se” não é o mesmo que “ser-se”. Eu posso sentir-me rico e ser pobre (ou vice-versa)!… Qualquer ofensa só é real se for exercida com a consciência de ofender. Se na sua origem não estiver a atitude de ofender, a ofensa não passa de um incidente que foi lido como ofensa pelo receptor, independentemente da intenção do emissor.

Como ateu estou habituado a ver as minhas palavras serem interpretadas de modo ofensivo por religiosos, e quando me abordam nesse sentido faço a “prova dos nove” lendo e comentando, ao pretensamente ofendido, o texto que ele diz ter sido uma ofensa à sua fé. Invariavelmente fica provado que o modo de ler (interpretar) faz a diferença entre a opinião e o insulto.

Há quem inicie a leitura de um texto (sabendo que ele foi escrito por quem não alinha nas suas verdades políticas, religiosas ou futebolísticas), com intenção negativa e preparado para ver por ali ofensa ao seu modo de entender a coisa. E quando esta ofensa não existe, ele acaba por a “ver” porque está mentalmente preparado para a fabricar! Por isso aceito que o BE usasse aquela imagem e aquela frase sem pensamento ofensivo, por não ter essa intenção à partida.

Qualquer texto, incluindo os textos bíblicos do Velho Testamento, mais os neo-testamentários, está sujeito a interpretações várias (por isso é que há tantas religiões diferentes com base nos textos do mesmo livro) e não é lícito rotular de ofensiva qualquer interpretação só porque choca com um entendimento diverso do mesmo tema. Para um ateu (e para a própria História) a gravidez de Maria anunciada por um anjo não é um facto histórico, nem naturalsó é uma “estória de fé”, a qual, merecendo respeito, também merece crítica numa sociedade maior, livre e consciente da Liberdade que tem.

A gravidez de Maria é uma cópia, na versão cristã, da gravidez de Alcmena violada por Zeus para gerar Hércules, e que os escribas cristãos foram buscar à mitologia grega, retocando-a a seu jeito. Zeus lambuzou-se no leito de Alcmena tomando a forma de Anfitrião, o seu marido, para a enganar à boa maneira dos homens perversos e traidores (que eram sempre o espelho dos deuses).

A versão de Maria é mais cândida por escamotear o acto carnal da cópula, mas também mais irreal por nada ter de natural. Todos nós sabemos que uma gravidez precisa de um óvulo e de um espermatozoide que o fecunde. (Naquele tempo não havia laboratórios de inseminação artificial, nem clonagem). Afirmar o contrário disto… é fé divorciada de qualquer realidade.

A fé deve ser mantida por quem a tem, e respeitada por quem a não temmas não é matéria tabu! Nada o é. Numa sociedade maior (como é a nossa, liberta de ditaduras fundamentalistas religiosas) pode-se falar de tudo, seja elogiando, comentando ou criticando. E se a fé ofusca o entendimento… quem deve “desofuscar-se” é o religioso seguidista que desliga o seu motor de busca e não procura entender o que lhe dão para alimento da sua fé… e nunca o seu crítico.

Por muito respeito que me mereçam todos os crentes, eu tenho (como eles) o direito de exercer o meu raciocínio. Não é falta de respeito questionar: se José é afirmado como pai adoptivo de Jesus… teve de haver um pai biológico, e a biologia implica sexo. 

A fé tolda a razão?!… Se sim, é bom que quem assim sente tome consciência disso e deixe de se sentir ofendido pelas lícitas considerações de quem dispensa a fé e o mito por lhe bastar a realidade e a naturalidade das coisas reais e naturais.

OV



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