A troika, a fé e a vida (alegoria) – crónica – 25-12-2022 (para publicação em livro)
Nasci sob asfixia de uma troika – Pai, Filho e Espírito Santo –, sob terror de ameaças de quem tinha em todas as paróquias funcionários durões que zelavam pela amortização do empréstimo da vida, pela remissão do pecado original e por juros agiotas, fixados pelo credor, a quem não pedira para nascer, com a dívida do empréstimo.
O batismo era o pacto de pagamento – dom da troika –, e um
imperativo a que ninguém podia eximir-se. Começava-se em criança a rezar
ave-marias e aos sete anos já a salve-rainha, o credo e as bem-aventuranças
abrangiam juros anuais, pagos com a eucaristia e, antes dela, com o ato de
contrição e a penitência após a desobriga quaresmal.
A dívida não diminuía e os juros não baixavam. As crianças
queriam ser boas alunas da troika, ir além das exigências, mas a dívida
crescia, as ameaças prosseguiam e o Inferno era uma inevitabilidade. Aos dez
anos o delegado paroquial, exigia-lhes um novo pacto para que a troika
libertasse a segunda tranche da salvação eterna. Era a confirmação, que tinha
como notário o bispo e como selo branco uma cruz desenhada a óleo na testa dos
devedores. Aos 10 anos, as crianças da
aldeia já tinham sido fustigadas com quatro sacramentos e uma comunhão solene
sem que a dívida abrandasse.
No meu caso só me poupou ao 5.º sacramento, a extrema-unção,
o facto de o padre estar ausente. Tinha ido levar o viático a um moribundo de
Carpinteiro, certamente com mais pecados, quando, nos meus oito anos, a Ti
‘Ismelindra’ lhe mandou recado por ver a minha mãe descoroçoada, a pedir aos
santinhos que me livrasse do sarampo contraído antes das duas irmãs, mais
novas, e que ainda me prostrava, em profunda debilidade, e já elas corriam pela
aldeia.
Cansados do ónus ou tornados malhadiços com tanta exigência,
começou a relaxação da fé. Ficavam por pagar as penitências, chegava-se tarde
ao mês de Maria e hilariavam-se as crianças durante a missa, mas quem nunca se
riu na missa que atire a primeira hóstia.
Foi assim, com uma dívida crescente, com exigências
impiedosas, que renunciei à vida eterna e à dívida.
Fiz então um pacto com Deus, que ainda perdura e ambos
honramos. Eu comprometi-me a não fazer milagres e ele não escreve crónicas.
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