Eleições britânicas e as ‘lições inglesas’…
Provavelmente será mais avisado começar a usar a designação de Inglaterra em detrimento do conceito ‘Reino Unido’. Há fortes indícios que essa expressão poderá ter ficado arrumada no baú das recordações após o ‘Brexit’ e as mais recentes eleições parlamentares daí decorrentes. O histórico desfecho do conflito ocorrido, no início do século XVIII, entre a casa dos Stuarts e a de Hannover e que levou ao Tratado da União, originando a tão influente e ‘imperial’ Grã-Bretanha deixou, no presente de muitos dos cidadãos britânicos, de ter significado.
As relações entre a Ilha e a Europa continental foram sempre muito difíceis e conflituosas. Muitos dos confrontos foram traumatizantes e duradouros como é o paradigmático exemplo da ‘guerra dos cem anos’. Grande número desses conflitos teve para além das catastróficas consequências humanitárias um profundo impacto nas evoluções política e institucional dos ‘envolvidos’, quer na Ilha, quer no continente europeu.
Na verdade, foi o mais recente desses dramáticos e cíclicos conflitos – a II Guerra Mundial - que esteve na génese do contemporâneo quadro de convivência, solidariedade e reconstrução europeia que atravessou a guerra fria, foi sacudido pela queda do muro de Berlim, respondeu à necessidade de paz e desenvolvimento com soluções ‘comunitárias’ de índole federalista e agora ameaça ruir perante uma constelação de graves ocorrências encadeadas (crise europeia, Brexit, Trump, etc.). Os ‘aliados ocidentais’ que foram capazes de se congregar no último conflito contra o ‘eixo’ nazi-fascista europeu estão, no presente momento, em franca fase de convulsão, prisioneiros de novos nacionalismos e aparentemente incapazes de fazerem frente ao populismo-nacionalista ascendente.
A ascensão do populismo extremista de Direita – um pouco por toda a Europa – prova duas coisas: primeiro, não colhemos as devidas lições da História, em segundo lugar, que não existe, no presente, ‘espaço político’ capacitado para renovar um consenso político e civilizacional capaz de enfrentar as ameaças do futuro.
As eleições britânicas lançaram Londres, saudosamente imperial e prisioneira do monetarismo da ‘city’, num grave período de incertezas e, explicitamente, mostraram que o jogo europeu dos conservadores (dos moderados aos ultra) desfasou-se irremediavelmente das ‘soluções de futuro’ pré-anunciadas pela primeira-ministra link .
A frágil aliança dos Conservadores com os Unionistas irlandeses é um expedito exercício numérico para apresentar à Rainha mas não satisfaz os britânicos nem tem consistência política. Aliás as consequências imediatas serão o prolongamento do impasse político que se vive na Irlanda do Norte e politicamente carregam nas entranhas (unionistas) nuances de putativas inflexões homofóbicas, negacionistas da crise climática e até criacionistas.
O equilibrismo numérico obtido para fabricar uma parca e tremida maioria na Camara dos Comuns dificilmente sobreviverá às mais comezinhas situações, como sejam as habituais ‘migrações parlamentares’ reflexos de quezílias partidárias que frequentemente ocorrem e transitam para o exterior como uma deriva de consciência através do enigmático estatuto de ‘independentes’.
Por outro lado, o partido Conservador não conseguirá evitar, nos próximos tempos, levar a efeito no seu interior processos de esclarecimento e de clarificação. Theresa May que avançou para eleições gerais à revelia de alguns barões conservadores será chamada, como é tradicional, a prestar contas (logo que surjam hipóteses de novas lideranças). As declarações de Osborne, influente membro dos tory que declarou a Srª. May como “a dead woman walking” link mostram como não é certo, nem seguro, que a atual primeira-ministra possa resistir à dinâmica de mudança do seu partido perante o fracasso estratégico que as eleições de 5ª. feira representaram e expressaram. Nessa altura virão ao de cima as preocupações que extravasam o Brexit e muito particularmente incidirão sobre a desagregação do Reino ainda apelidado de ‘Unido’.
O ‘problema escocês’ e - em certa medida diferente – o do País de Gales voltará, abruptamente, a entrar na agenda política britânica e vai causar ‘mossa’. De fora, mas só até ao naufrágio de Theresa May, ficará a Irlanda do Norte.
Por fim, é necessário não desvalorizar estas eleições em termos estratégicos, quer no âmbito britânico, quer no europeu. Duas grandes motivações condicionaram o oportunista timing programático e estiveram presentes no confronto eleitoral.
Primeiro, a pretensão de promover a saída através de uma ‘negociação dura’ com a União Europeia. Tal condição necessitaria – segundo a noção do actual governo - de um ‘amplo consenso dos britânicos’. Na verdade, não faltará muito tempo para os britânicos começarem a aperceber-se que os inumeráveis ‘benefícios do exit’, profusamente anunciados na campanha do referendo, são, na melhor das hipóteses, uma mão cheia de nada, quando não uma caminhada para o precipício. A anunciada ‘dementia tax’ é um dos exemplos paradigmáticos de como a saída da UE nunca será um veículo de canalização de dinheiro e investimento para os serviços públicos, neste caso particular, o NHS. A prestação dos conservadores no campo social está mortalmente inquinada pela ‘demência neoliberal’ que se arrasta desde Margaret Thatcher e não releva o mais pequeno indício de reversão ou arrependimento. As políticas sociais ‘impostas’ por Bruxelas não diferem substancialmente do neoliberalismo aplicado no Reino Unido na década de 80 (época Thatcher).
Em segundo lugar, um outro objetivo dos conservadores era ‘decretar’ o enterro tácito do socialismo (trabalhismo), na Grã Bretanha, através do afundamento de Jeremy Corbyn. Uma pompa fúnebre que teria necessariamente reflexos na Europa, já que empurraria os trabalhistas para o mesmo buraco que as posições delico-doces de Hollande reservaram aos socialistas franceses. A Jeremy Corbyn, acossado pelos conservadores, pela imprensa e pelos ‘blairistas’( no interior do próprio Labour), bastou - para conter a hemorragia - manter-se fiel aos ‘velhos’ princípios doutrinários do socialismo. A ‘vitória de Corbyn’ é frugal (pontual) e, também, repleta de fragilidades. Resta saber qual a capacidade dos trabalhistas para ‘capitalizar’, em termos de futuro, os resultados obtidos nesta tentativa de esmagamento sorrateiramente protagonizada pela srª. May. Trata-se de uma tarefa, à partida, muito difícil porque se conhece as dificuldades dos socialistas em gerir os processos de ‘capitalização’.
Mais do que conter o calculismo farisaico dos conservadores a grande vitória de Corbyn foi ‘destroçar’ a petulante obstrução dos ‘blairistas’, através de um direto, simples e primário revisitar dos primordiais (e vernáculos) tópicos da doutrina ideológica socialista.
Claro que o movimento socialista mundial precisa de renovação, modernização e inovação. Mas tanto na Grã-Bretanha, como na Espanha, em França e – no Outono veremos – na Alemanha há uma incontornável lição a tirar. Esta é: a revisão/adaptação do socialismo aos novos tempos não se fará através de 3ªs. vias (sejam de Tony Blair, Felipe Gonzalez, Gerhard Schrōder ou François Hollande). Para além desta ‘verdade’ tudo está em aberto. Tão importante como a ‘resistência’ revelada pelos trabalhistas britânicos deverá ser - quando se vislumbra um quadro de renovação socialista - a previsível hecatombe dos socialistas franceses (passados 3 dias dos acontecimentos verificados em terras de Sua Majestade).
O tempo é de resistência enquanto a aprendizagem, com o processo histórico, marca passo. Urge tirar lições do presente até porque a ‘convulsão mundial’ está a adquirir uma perigosa e estonteante velocidade. De reter: acima de tudo, enfrentar a perigosa e descontrolada 'cavalgada trumpista'...
Terá sido por esta razão que Sanders felicitou Corbyn.
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