França, Macron e os actuais desafios da Esquerda…
A decomposição do sistema partidário francês, verificada nas últimas eleições presidenciais e confirmada nas legislativas subsequentes, levanta vários problemas doutrinários e políticos, podendo inclusive questionar o regime (V República). A começar pelo complexo sistema eleitoral que lhe está inerente e não possibilita a expressão de quotas de representatividade de acordo com a dimensão e peso da expressão popular, considerada no seu conjunto.
Em relação ao establishment verifica-se uma abrupta alteração dos contornos das forças político-partidárias no terreno se considerarmos a situação existente há cerca de 1 ano. Tal rutura só foi possível porque o sistema apresenta múltiplas lacunas na representatividade popular e tem como consequência a perda de capacidade para responder às questões que os cidadãos desejam ver resolvidas e decorrem do exercício pleno da cidadania.
Por detrás dessa alteração existem fatores múltiplos e diversificados sendo o mais relevante a ‘deriva financeirista’ do exercício do poder que contaminou a representação política.
A última revolução industrial (3ª. ou 4ª.?) trouxe novos problemas que chocam com a tradicional estratificação da sociedade que influenciam a evolução contemporânea do regime. O modelo de representatividade clássico, ou melhor, a agregação de interesses por sectores profissionais, económicos e sociais, não evoluiu em conformidade com a marcha do tempo. Hoje, a conceção de que o povo – entidade quase mítica - é o grande e decisivo protagonista histórico está perturbada pela introdução de novos vetores e já não é capaz de se exprimir com clareza e diferenciação o papel dos diferentes setores sociais na transformação do País.
Tornou-se difícil diferenciar interesses de ‘classe’ e o separar das águas entre um vasto e heterogéneo universo de eleitores onde os ‘patrões’ foram substituídos por impessoais sociedades anónimas agrupadas por holdings (obscurecendo a titularidade da propriedade), os ‘capatazes’ por submissos e prestáveis gestores e, finalmente, os trabalhadores por (incansáveis) colaboradores.
Os objetivos políticos deslocaram-se do interesse popular, maioritário e entendido latu sensu como o exército de trabalhadores por conta de outrem (desde os indiferenciados até à ‘mais bem formada geração’ a ser remunerada como se fosse ‘indiferenciada’), e alijou borda fora a ‘consciência de classe’ para assumir uma vaga ‘condição tecnocrata’, remetendo o histórico ‘lúmpen’ para a sarjeta (‘desempregados de longa duração’).
A força do trabalho, obviamente distinta do final do séc. XIX e início do XX, foi ‘empurrada’ das clássicas posições nas relações de produção para se enfeudar em escravizadoras performances do desempenho económico, centrar-se na persecução de uma espiral de objetivos de crescimento empresarial, na constante progressão da produtividade a qualquer preço e numa competitividade desenfreada e sem regras.
O ‘mundo do trabalho’ tornou-se absolutamente dependente dos ‘humores dos mercados’, que ninguém parece controlar, mas sub-repticiamente dependente de decisões ‘macroeconómicas’ de lobbys, escondendo estratégias globais (mundiais).
Montou-se um esquema oblíquo e enviesado que até poderia não ser grave e danoso se acaso existisse uma justa e equilibrada redistribuição da riqueza.
Todavia, as mais-valias obtidas com esta nova repartição produtiva não se destinam a propriamente a redistribuir mas o seu inexorável destino, para além da acumulação primitiva de capital, será – no ideário dos economicistas - reinvestir no sector empresarial para garantir elevados níveis de rentabilidade através de nebulosas ‘competitividades’, num ambiente globalmente inquinado, i. e., sem qualquer tipo de paridade em deveres e direitos (políticos, económicos, sociais e laborais).
Existem, por detrás deste espectro, três níveis de problemas que se confrontam, a saber: o continuum do crescimento económico, a insaciável meta da produtividade e os enfáticos níveis de competitividade. Na obscuridade, a manobrar toda a ‘orquestra’, está o financiamento destes vetores, reservado ao sector financeiro que estabeleceu regras próprias, não sufragáveis e dificilmente reguláveis. A atividade financeira tem vários instrumentos de intervenção ao dispor entre os quais um seletivo apoio ao investimento, através da promoção de alguns dos inefáveis ‘empreendedores’ para determinados negócios e de uma afunilada filtragem das inovações de acordo com os interesses mercantilistas, i. e., capazes de satisfazer necessidades (financeiras) dos mercados (…o dinheiro não tem pátria) e a especulação desenfreada.
Os cidadãos estão entalados no meio deste círculo e permanentemente ameaçados com o espectro da exclusão do mercado de trabalho e a remissão para o ‘estatuto’ do empobrecimento. O caminho para a exploração pelo capital das forças de trabalho é bem visível neste encadear de situações e condições. Mais do que visível acentuou-se desde há 10 anos a cavalo da crise financeira.
Em França - como de resto nos países ditos ‘desenvolvidos’ - verifica-se a confluência de todos estes problemas e os partidos tradicionais não se mostram capazes de responder às novas condições.
Perante este cenário encetaram uma fuga em frente e tentam influenciar transversalmente toda a sociedade definindo objetivos genéricos à volta de uma hipotética mediana, no quadro de uma estratificação social (que ainda existe), centrando-se naquilo que sendo ambíguo ainda dá votos e permite conquistar o poder, isto é, numa ‘classe média’ de contornos indefinidos, volátil, sem fidelidades, que ninguém sabe onde começa e acaba. Este afastamento, ou melhor esta diluição, dos problemas de classe é o ‘cavalo de Tróia’ das democracias. Neste ambiente revelaram incapacidades que se transformaram no quintal dos populismos, espaço logo ocupado pela extrema-direita mais ousada e radical nas soluções e mais ‘tolerada’ pela comunicação social e mais ‘corporativista’ nos programas.
A Direita, seja a pura e dura, seja a travestida de ‘Centrão’, aproveitou-se do clima internacional onde campeava (…e ainda campeia) o (neo)liberalismo económico para ‘assaltar’ o poder em nome da modernidade das soluções económicas e financeiras. Ao fracasso de Sarkosy segue-se o curto e desastroso interregno de Hollande que em vez de atenuar as cisões sociais e inverter o marasmo económico veio agudizar ainda mais os problemas e abriu caminho à ‘época Macron’ que não tem tanta solidez como lhe querem conferir.
Emanuelle Macron – oriundo da elitista Escola Nacional de Administração (ENA), com tirocínio no sector financeiro (bancário) - cedo se apercebeu das incongruências da presidência Hollande (afecta à vertente ‘social-liberal’) e à primeira oportunidade saltou do circulo do poder que então já parasitava para pôr ‘em marcha’ um movimento, à margem dos esquemas tradicionais, atraído pela possibilidade de ocupar o espaço ao Centro. Estava determinado a beneficiar das ‘divisões’ da Direita gaulista e neogaullista e, paralelamente, colonizar os destroços no campo socialista provocados pelo ‘desastre Hollande' .
Este o caminho para tentar chegar ao Eliseu que veio a revelar-se expedito. Sem se preocupar com qualquer definição ideológica (nem de esquerda, nem de direita!), revelou-se capaz de alimentar ‘ilusões progressistas’, mascaradas com modernidades tecnológicas e administrativas bem como capaz de canalizar as influências exteriores (europeias).
Serviu-se do quadro europeu para dar consistência ao ilusionismo elitista do seu projeto e por esta via (mais uma...) penetrou em significativos sectores da ‘classe média’ gaulesa. Este golpe de cintura permitiu-lhe ‘arrebanhar votos’ em cerca de um quarto do eleitorado (23% na primeira volta das presidenciais). Depois foi, perante a descredibilização da Direita (liderada por Fillon), o cavalgar da ‘onda republicana’ na 2ª. volta das presidenciais e, mais recentemente, aproveitar-se de uma particularidade de regime, resquício da conceção gaulista da V Republica, para reivindicar a sintonia entre o Presidente e o Parlamento e obter uma expressiva votação nas eleições legislativas.
Este trajeto revela que Macron não sendo o novo ‘Hercules da política gaulesa’ não tem também arcaboiço institucional e político para ser o catalisador de uma nova política europeia. Transformar um malabarismo ganhador num projeto consistente é pura e simplesmente uma proeza mitológica, isto é, o tomar a nuvem por Juno.
Por outro lado, o PSF encetou uma deriva social-liberal, muito mais liberal do que social, orquestrada pela ala colaboracionista-liberal do PSF orquestrada por Hollande/ Valls, com várias cumplicidades (da ‘velha guarda rocardiana’) que acabou o último quinquénio presidencial enterrando a toda a Esquerda (e não só o PSF). Seria bom – para a 'Esquerda global’ – que os sociais-liberais se abstivessem de tentar salvá-la.
De facto, a atual situação da esquerda socialista regrediu até aos tempos de 1969 quando, nas presidenciais que elegeram Pompidou como sucessor de De Gaulle, Gaston Defferre, candidato da Secção Francesa da Internacional Operária (SFIO), um prestigiado político e um resistente anti-nazi, obteve 5% dos votos. Desta copiosa derrota nasce, após o Congresso d’Épinay (1971) e uma ‘arrumação’ da Esquerda socialista fragmentada, o ‘novo’ PSF, sob a batuta de François Mitterrand.
Na sequência deste Congresso em 1972, o ‘Programa Comum’ com Partido Comunista (G. Marchais) viria à luz do dia e, na sequência desse histórico acordo, Miterrand candidata-se à Presidência da República sob o manto de uma ‘união das esquerdas’. De 1981 a 83 um Governo PSF/PCF está em funções, tendo como base o programa comum e lança os alicerces de um estado moderno no campo económico e social (nacionalizações, imposto sobre as fortunas, aumento do SMIC, reforma aos 60 anos, semana de trabalho de 39 horas, leis laborais (Lei Auroux), reforma do sistema judiciário e penal (abolição da pena de morte e extinção dos tribunais militares), liberalização dos meios audiovisuais, descentralização administrativa, etc.).
É sabido que esta ‘primavera’ foi sol de pouca dura e teve dramáticas consequências. Em 1984 o PCF abandona o governo em rutura com a ‘viragem à direita’ da presidência Mitterand (nomeação de Laurent Fabius para primeiro-ministro) e vitima das conceções rocardianas (‘deuxième gauche’) e começa um prolongado declínio dos comunistas que jamais recuperarão. Entre 1997 e 2002 é ainda o tempo para a fugaz experiência da ‘gauche plurielle’ (onde participam comunistas, radicais e verdes) e assim se encerra o ciclo da Esquerda francesa no século XX.
Durante o século XXI até 2012 a França vive e alimenta o status quo (europeu) sob as presidências de Chirac e Sarkozy. A reconquista da presidência pelo PSF através de Hollande seguida de uma maioria parlamentar pelo PSF viria a ser fatal para a toda a Esquerda.
Benoit-Hamon tem razão quando afirma que Hollande o “traiu pelo método” (frase como Hollande reagiu à demissão de Macron do seu governo). Muitos franceses terão a sensação (para não dizer a convicção) que por detrás das cortinas do Eliseu Hollande torcia por Macron, renegando as suas origens partidárias.
É óbvio que o ‘haraquíri da Esquerda’ é um triste espetáculo que se desenrola perante os franceses e francesas. Cabe aos próprios enfrentar este cenário. Todavia, a esquerda europeia olha para o ‘caso francês’ com preocupação e porque se rege por ideais solidários não permanece divorciada do que está a acontecer no coração da Europa.
Assim, se há uma premente tarefa que se revela indispensável, após estas últimas eleições em França, será a urgência de procurar consensos sob um novo ‘Programa’ que não teria de designar-se de ‘comum’ (como no passado), mas ‘solidário’ (un ‘contrat de rassemblement de la gauche’) reunindo o PSF dos ‘frondeurs’, i. e., um PSF expurgado dos sociais-liberais (que em grande parte já se bandearam para a ‘France en Marche’), envolvendo a ‘France Insubmisse’ de Mélechon (originária de uma deriva 'esquerdista' sobre a questão europeia que prossegue desde 2005), os Verdes (a ficção da ‘Esquerda Alternativa’) e o residual Partido Comunista, remotamente ‘eurocomunista’.
Não se trata de refundar um Partido Socialista alargado e retificado mas de criar um ‘Movimento de Esquerda’ (p. exº: la ‘Gauche en Marche’) com capacidade para criar e aplicar um amplo e sólido acordo (‘posições conjuntas!’) gizado à volta de duas questões fundamentais e candentes: O modelo desenvolvimento económico e social e a questão europeia.
O ‘modelo de desenvolvimento socialista’ terá necessariamente de assentar na adoção dos princípios básicos e históricos do socialismo e, fundamentalmente, num convicta rejeição do modelo liberal e de todas os encapotados trejeitos ‘colaboracionistas’.
Problemas como a política monetária e fiscal, o controlo do sistema financeiro, a valorização do trabalho e dos direitos sociais, a (re)nacionalização dos sectores económicos e financeiros estratégicos, a questão agrária e rural (tão importante no contexto político e económico francês), o investimento público, a democratização das comunicações, a sustentabilidade ecológica, etc. são susceptíveis de gerar (pragmáticos) consensos entre as forças que atualmente se posicionam à Esquerda do espectro partidário se as mesmas se mostrarem disponíveis para agregarem as bases sociais de apoio que presentemente disfrutam.
Resumindo, trata-se de um ‘back to basics’. Não há razão para deixar que o pragmatismo (um mero instrumento de acção) seja um privilégio da Direita.
A ‘questão europeia’– que de facto existe e é fracturante – não pode continuar a ser um denominador comum entre a(s) Esquerda(s) e a Extrema Direita. A Esquerda com uma matriz ideológica internacionalista deverá propor e bater-se por uma ‘outra Europa’ (a dos ‘cidadãos’) que nada tem a ver com a situação presente regida por um somatório de regras elaboradas e impostas pela Direita organizada no ‘Partido Popular Europeu’. É certo e sabido que esta batalha não pode endossada a Macron.
A solução não será certamente a mecânica reedição de um ‘frentismo popular’ dos anos 30 (pesem embora as similitudes entre a deriva fascista de então e o populismo nacionalista de extrema-direita de agora) porque permanecem na memória os históricos ressentimentos de ‘traição’ aos ideais e ‘canibalização’ partidária que marcaram a III Republica Francesa.
À primeira vista, uma solução desse tipo assemelha-se a uma reedição do dèjá vu e - relembrarão alguns - conhecemos os resultados deste tipo de ‘experiências’. Todavia, fora dos dois grandes marcos protagonizados por (episódicas) convergências das Esquerdas (Frente Popular e Programa Comum) nada – em quase um século de trânsito histórico - foi feito de melhor em termos sociais, pese embora o fracasso económico e financeiro ditado por convulsões bélicas de matriz internacional.
Na realidade, confrontados com a ‘repetição’ de um ciclo histórico, não propriamente da mesma história, verificamos que a Frente Popular e o Programa Comum corporizam os grandes avanços em termos sociais (civilizacionais) na terra de Voltaire que perduraram e hoje estão ameaçados pela ‘era Macron’.
É visível a ameaça de um brutal recuo em termos civilizacionais, nomeadamente, nas questões relativas ao ‘mundo do trabalho’ e na repartição da riqueza que decorrerá sob um ‘clima de excepção’, ditado pela ameaça terrorista.
A premência de encontrar uma ‘solução de esquerda’ para enfrentar os novos tempos de ameaça, como a financeirização, o autoritarismo, a militarização, o controlo, a segurança, entre outros desafios do presente que cerceiam os cidadãos, a Liberdade e a prosperidade, é deveras gritante.
Algo paira no ar em termos de futuro: quem recusar dar este passo carregará – daqui para a frente – o ónus do irreversível desmantelamento da Esquerda francesa que estas eleições já enclausuraram nas margens da V República.
A Esquerda precisa, para respirar, de libertar-se das amarras do sombrio presente.
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