Delação premiada, ética e as minhas limitações
Há tão grande excitação em torno de um larápio de dados informáticos que exigirá uma venera para o autor como reparação da injustiça da sua prisão preventiva.
Talvez a minha hierarquia de valores esteja a precisar de aferição e os princípios éticos divirjam do senso comum, quiçá por um exacerbado apego aos direitos individuais e ao respeito pela inviolabilidade do domicílio, ou por rudimentar conceito de cidadania.
Não consigo compreender que alguém que invada domicílios e se aproprie de bens que, afinal, eram fruto de crimes ou documentos que os provem, possa ser ilibado do assalto, reabilitado como cidadão e incensado como herói. Afinal, ele não roubou, furtou, e só lhe faltou a legitimidade policial com o respetivo mandado judicial, meras burocracias.
Sem preparação jurídica nem sensibilidade para avaliar a dimensão dos benefícios que o furto pode prestar à sociedade, refugio-me no conceito rudimentar de que o furto é um roubo, quem rouba é ladrão e quem defende ladrões é cúmplice, salvo o legítimo direito de defesa a que todos temos direito e que cabe aos advogados exercer.
É curioso que, enquanto os Papéis do Panamá jazem há anos na quietude de dois órgãos de informação, surgem novos casos que os fazem esquecer e heróis insuspeitáveis que alimentam a voracidade mediática numa onda justicialista que gera perplexidade.
O que está em causa não é saber se há nas investigações uma orientação conduzida pela comunicação social, que as hierarquiza e define o grau de urgência, o que me inquieta é a minha anormalidade, não ver num marginal um herói, não aceitar integrar campanhas de linchamento de uns arguidos ou heroicização de outros, incapaz de fazer a destrinça entre delinquentes, entre quem deve e quem não deve ser punido, entre heróis e vilões.
Penso saber que o furto é o roubo sem violência e que a moldura penal é diferente, mas o furto de bens atrás do computador é sempre um crime que não suja as mãos nem exige grande força. É uma apropriação que não estraga o vinco das calças, não exige escalar muros e não corre riscos físicos, mas não deixa de ser o crime que lesa bens materiais e devassa a intimidade da vítima.
Há tal avidez pelo escândalo que se ignora a clareza do artigo 126.º n.º 3 do CPP: “São igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular.”.
É difícil aceitar que um sobredotado útil possa ser legalmente amoral, mas talvez sejam as minhas as limitações cognitivas que não me permitem o entendimento que devia.
No ar, anda aí um velho problema, a delação premiada por que aspiram muitos.
Ponte Europa / Sorumbático
Comentários
Whistle-blowing é uma coisa completamente diferente. Daniel Ellsberg, no caso dos 'Pentagon Papers', violou a Lei para transmitir à imprensa informações de interesse público provenientes de uma instituição na qual trabalhava. Fê-lo em consciência, sabendo que poderia passar muitos anos na cadeia.
Pinto, ainda por cima, pelos vistos, tentou extorquir dinheiro em troca do que sabia, o que fará dele um chantagista. Agora, procura reduzir a pena tentando negociar com as autoridades, o que estas não podem fazer.
Se espera alguma espécie de benevolência deveria fazer o que faz qualquer pessoa honrada, que é colaborar com a Justiça sem condições...
Mas vir agora defender o vigilantismo será coisa que eu nunca farei. As técnicas que permitem reunir provas de maneira ilegal contra um corrupto são as mesmas que permitem espiar um dissidente.
Espero, muito naturalmente, que se atenda à natureza não-violenta dos crimes que são imputados a Rui Pinto, se for ele condenado. E espero que ele, que parece ter uma certa tendência para atacar, ao melhor estilo populista de um Sócrates, por exemplo, aqueles que o investigam, seja julgado com todas as garantias, aquelas que estariam postas em causa se os métodos por ele utilizados se tornassem moeda corrente...