HUMOR E RELIGIÃO (2)
Por Onofre Varela
O escândalo armado pela Igreja Católica à volta do programa de humor e diversão “Herman Zap!”, em 1994, levou à realização de uma Mesa Redonda na RTP, em horário nobre, tal era a importância da matéria em apreço.
Discutiu-se aquele programa transformado em tragédia nacional pela Igreja, com um painel diversificado, do qual fazia parte Frei Bento Domingues e um professor universitário católico. Este, manifestou-se totalmente contra o programa de humor em questão, considerando-o demoníaco ou próximo de tal apreciação.
Já Frei Bento Domingues (único interveniente que podia, licitamente, representar a Igreja por fazer parte dela) sublinhou estar ali particularmente, não representando mais nada nem ninguém, para além dele próprio. Pareceu-me ser o interveniente que teve a opinião mais lúcida. Declarou ter visto o programa e não ter encontrado nele nada que beliscasse a sua fé. Confessou que até lhe achou graça: “Aquilo tinha a ver com o meu riso, não com a minha fé”, disse.
É sempre bom sabermos que a Igreja não é só composta por fanáticos intolerantes, saídos de amarelecidas e mal cheirosas folhas de pergaminho arrancadas a um livro medieval. Felizmente (principalmente para ela própria, para o seu futuro e para a sua credibilidade) que também conta com membros dotados de “inteligência exterior à fé”, como é o caso de Frei Bento Domingues.
Mais recentemente, na madrugada do dia 24 de Dezembro de 2019 (era então Jair Bolsonaro dono do Brasil e dos brasileiros) houve um ataque com cocktails Molotov à sede da produtora de conteúdos televisivos Porta dos Fundos, como protesto pela transmissão televisiva de um sketch cómico com o título "A primeira tentação de Cristo", na qual Jesus era representado como um jovem que teria uma experiência homossexual, e também se insinuava que o casal bíblico Maria e José viveu um “triângulo amoroso com Deus”.
Eu vi o programa e não lhe achei a graça que, provavelmente, os seus autores pretendiam. Teve dois ou três momentos de humor, e o restante, para o meu gosto e de acordo com o excelente trabalho que já vi do mesmo grupo, era francamente mau. Para mim tinha uma qualidade muito rasteira… mas, daí, até se lançarem bombas contra a empresa produtora do programa, vai uma distância abissal!…
Pode-se gostar, ou não gostar, de qualquer programa televisivo, como se gosta, ou não se gosta, de um livro, de uma música, de um filme ou de uma personalidade pública; e é lícito criticar aquilo (ou aquele e aquela) de que não gostamos. Numa sociedade livre e democrática (como deve ser o Brasil moderno) quem se considera ofendido na dignidade ou no mais profundo das suas convicções, apresenta o seu protesto às entidades competentes para julgar o caso. A Democracia e a Justiça farão o seu trabalho... mas um ataque à bomba é crime!
Naquele momento a política brasileira contava com acções da Direita mais extremista que apoiava Bolsonaro. A liberdade de expressão e de criação artística estava comprometida e o próprio filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, deputado por São Paulo, foi uma das figuras públicas a condenar o sketch. Os actores Gregório Duvivier e Fábio Porchat, responsáveis pela “Porta dos Fundos”, declararam: “Não nos vamos calar! Nunca!”. Eu apoiei-os, embora aquele trabalho não me agradasse, mas defendo a sagrada liberdade de expressão.
Um dia depois do atentado, um grupo ultra-nacionalista intitulado Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integrista Brasileira, reivindicou a responsabilidade do atentado.
O espírito que sobressai do nome deste grupelho leva-me a entendê-lo como uma espécie de Ku-Klux-Klan e de agrupamento Nazi. Só grupos de tal índole atacam a liberdade de expressão, alegadamente em favor de um ultranacionalismo balofo, desusado, fundamentalista e criminoso.
E será que os criminosos bombistas, insatisfeitos com o trabalho humorístico da Porta dos Fundos, entenderam o sketch? Será que conhecem a passagem bíblica que lhe deu origem?
É o que contarei no próximo artigo.
(Continua)
(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)
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