Reflexões sobre novas “Odisseias” mediterrânicas…

Quando se olha para o Mediterrâneo como um mar interior que banha Cádis, Marselha, Nice, Roma, Nápoles, Atenas, , etc., contempla-se um percurso que se revê no orientalismo, próximo e distante, que moldou a Europa, velho continente, criado - como disse Paul Valéry – a partir de um “pequeno cabo da Ásia” e encomendado pelo “pai dos deuses” [Zeus] para dominar o Mundo, estamos a rever o passado. Será [o Mediterrâneo] um berçário de culturas multicêntricas [egípcia, grega, romana, islâmica] e um palco onde se conceberam, viveram e sucumbiram, múltiplos impérios. Aliás, Zeus não será mais do que a primeira figura imperial deste mundo imaginário. Do mundo que chegou até nós, ainda, carregado de mitologia.


Na verdade, o Mediterrâneo está na encruzilhada entre a Ásia e a África. A mitologia grega fez-nos esquecer os tempos bárbaros e apagou o sapiente, misterioso e milenar Egipto, o remoto e espantoso Crescente Fértil [Mesoptâmia], pondo-nos a sonhar, à sombra da estonteante luz [claridade / clarividência] mediterrânica, aquilo que, ainda hoje, denominamos de Ocidente. Aliás, Europa, é, na mitologia mediterrânica, filha de um rei fenício que tendo por mãe a Ásia, foi rainha de Creta… cujos filhos teriam migrado para o Velho Continente para "construí-lo". No Mediterrâneo Sul, as incursões imperiais tropeçaram em Alexandria, Cirene, Leptis Magna, Sabatra, Cartago, Tingis, até às "colunas de Hercules" mas, para além do fascínio da sabedoria, da expansão do poder e do intenso mercantilismo, nunca admitimos que - este Mar - nos unia. Foi, antes, uma estrada de comércio, de traficância de poderes, de conquistas e reconquistas, sempre pejada de incidentes bélicos.


Habituamo-nos a admirar os gregos pela Filosofia, de que não foram os inventores, mas intensivos cultivadores e, se esmiuçarmos mais, tropeçamos com Platão que admirava a sabedoria egípcia e o seu sentido de eternidade. A cultura helénica pejada de deuses – tinha um deus para cada coisa! – acabou por domesticá-los, dar-lhes uma dimensão humana, reduzi-los a estátuas. Foi o mar de Ulisses que desde os tempos homéricos foi palco de intermináveis confrontos, guerras, tragédias. Criou-se um paradigma grego difícil de interpretar. Na cultura helénica haveria de se enxertar a cultura romana que, posteriormente, criou a matriz judaico-cristã, uma cultura de crença, como haveria de ser, mais tarde, a islâmica, por sua vez objecto de ulterior "reconquista".


Mas quando olhamos para o Mediterrâneo em termos de poder a imagem major é a da cultura imperial romana. O Mare Nostrum. Através dele, Cipião domina Cartago e Augusto assenhora-se do milenar Egipto.


A terceira grande vaga mediterrânica foi a expansão árabe que ganhou uma invejável pujança com a queda de Constantinopla.

Até ao séc. XVI esta mescla de culturas viveu em permanente confronto. Só que no seio desses confrontos, apareceu um Islão - derrotado no terreno europeu [pela “Reconquista”] – que acabaria por consolidar – até aos dias de hoje - a sua cultura e religião, desde a Turquia ao Magreb. Passamos a ter, então, Alexandria, Tripoli, Tunes, Argel, Tanger e não Cirene, Leptis Magna, Sabatra, Cartago, Tingis, …


O Mediterrâneo, com toda esta diversidade, sai da História, enquanto potência, com a II Guerra Mundial. O herdeiro deste passado tão glorioso pretende ser o Ocidente [judaico-cristão] que, pouco próximo [culturalmente] deste Mediterrâneo, de novo, volta-se para o Oriente, sem a grandeza de Alexandre, mas imbuído das ideias emanadas da Revolução Francesa e do poderio advindo da revolução industrial, tornam este espaço [civilizacional] uma “nova conquista”. O Mediterrâneo [europeu] foi um instrumento de denominação do Mundo que, a posterior inclusão do “Novo Continente” [a América], incentivaria a conflitualidade Norte-Sul, Oriente-Ocidente...


Esse larvar confronto entre a Europa Mediterrânica fechada na sua História, orgulhosa dos seus feitos, arrogante em relação ao futuro e o Oriente [próximo] inflexível na determinação, guerreiro, conquistador e submetido ao Islão será um dos [múltiplos] berços da Modernidade.

O trajecto contemporâneo das civilizações tendo acrescido a estes velhos problemas os novos paradigmas da revolução industrial e um modelo de domínio imperial [decalcado da Roma imperial], cujo motor histórico deixou de ser as conquistas, a honra e a glória para focar-se em modelos hegemónicos na política, na economia, no desenvolvimento e, até, nas crenças.

O virar de costas a este diversificado e sempre precário Mediterrâneo, nos meados do séc. XX, trouxe à ribalta - na bordadura mediterrânica africana - regimes déspotas e, acima de tudo, serventuários dos interesses do dito Ocidente. Deixamos à solta – porque convenientes - fantasmas humanitários e traumas religiosos, desde que se mantivessem silenciosos. Povoamos esse Mediterrâneo que previamente condenamos à penúria [identitária e cultural] com monstros [do tipo do furioso e irado Poseidon], empedernidos déspotas, aparentemente subjugados, travestidos de caducos califas ou de rídiculos faraós...


Será este iníquo caminho – em termos políticos e socioculturais - a causa remota das actuais insurreições, do insuportável ruído, nas “ruas” árabes. São viagens de outros Ulisses ao encontro de novas Ítacas. Uma nova Odisseia que deixou de ser um poema para ser um percurso sedicioso, conturbado e rebelde.

Mas a caminhada para qualquer Ítaca é, antes de tudo, uma experiência amarga, dolorosa, pejada de traições, tal como a História nos relata sobre Tróia. Não um destino risonho, fácil e rico [paradisíaco].


Esperemos que destes recentes confrontos entre a servidão e a libertação acabem por florir novos remanescentes civilizacionais que libertem os povos dos enganos, da nostalgia, da crendice, enfim, do subdesenvolvimento.

Aguardemos por uma lenta gestação de novos equilíbrios, de ousados desígnios, na busca do progresso, no encontro com a modernidade que apaguem o maléfico “status quo” concebido [pelo Ocidente] para a era pós-colonial…


Na verdade, perdemos a ancestral capacidade grega de utilizar a tragédia para exorcizarmos o trágico… Por isso, a “rua” árabe [ainda] permanece trágica e, simultaneamente, misteriosa, aos nossos olhos.

Mas temos consciência que qualquer nova Odisseia mediterrânica será sempre uma longa e difícil viagem.

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