A abolição dos feriados e o estado laico
Independentemente da ofensiva contra os direitos dos
trabalhadores, de que a abolição dos feriados é um mero sinal, falta provar os
benefícios resultantes de mais quatro dias anuais de trabalho.
O programa ideológico do Governo põe em causa a República cuja
Constituição impõe a laicidade. Não é comparável o que é diferente. Os feriados
de 5 de outubro e 1 de dezembro são feriados identitários, pertencem à memória
do povo, como nação, e são datas de todos os portugueses independentemente dos
sentimentos que lhes despertem. O Corpo de Deus e a Assunção de Nossa Senhora
ao Céu são datas só de uma religião e, por maior afetividade que despertem, não
passam de eventos de uma fé particular.
Comparar a data da implantação da República, regime cuja
alteração está proibida na Constituição, e a Restauração da Independência de
Portugal, com o Corpo de Cristo ou com a «subida ao Céu em corpo e alma» da mãe
de Jesus, é trocar a memória histórica por crenças de uma religião a que se
quer agradar.
Esta conduta, um ultraje à República e à laicidade, abre portas,
no futuro, à chantagem de novas religiões sobre o Estado.
No 5 de outubro houve heróis na Rotunda e nasceu um novo regime
que em 2010 foi comemorado com pompa e circunstância. Em 1 de dezembro de 1640,
40 conjurados restauraram a independência de Portugal. O Corpo de Cristo é uma festa
respeitável para quem acredita na transubstanciação, isto é, na transformação do
pão ázimo em corpo e sangue de Cristo, processo alquímico, através da
consagração da hóstia, que nem os crentes veem. A «Assunção de Nossa Senhora aos
Céus», em corpo e alma, é um dogma de Pio XII, de 1950, relativamente a um
evento de que se ignora a data, o local, o meio de transporte e o itinerário.
Não se pode comparar a hipotética viagem da mãe de Jesus, defunta, com o
nascimento de um país e de um regime. O Papa, pelos vistos, desconfiado da
viagem da Virgem, obrigou os bispos portugueses a substituírem a Assunção pelo
1 de novembro, dia de todos os santos, embora muitos o sejam tão pouco.
Para agravar a situação e enxovalhar o Governo, o Vaticano, prepotente,
condescendeu em suspender, durante 5 anos, dois dias santos, enquanto o Estado
português elimina os dias da identidade nacional sem precisar se a medida é
temporária. É preciso topete.
Para a Igreja católica todos os dias são santos. Sendo
assim, para quem já dispõe de 52 domingos, que diferença faz o dia da semana ? De
uma única decisão saem feridos os direitos dos trabalhadores, a laicidade e a identidade
nacional. Nem o PR faria pior.
A lei da simetria, descoberta de beatos, compara uma
democracia à cúria romana e cria o precedente de equiparar feriados nacionais a
eventos pios, um país soberano a uma teocracia e, quiçá, deixa o Código Penal
aberto à sharia romana.
Ponte Europa / Sorumbático
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